domingo, 18 de maio de 2008

Artigo - Detentores de foro por prerrogativa de função podem apelar? A inconstitucional relativização do Duplo Grau de Jurisdição

I. Introdução

Imagine o prezado leitor as seguintes hipóteses: 1.ª) Escriturário é condenado (injustamente) pela pratica de um furto; 2.ª) Uma autoridade que goze de foro por prerrogativa de função (ministro do STJ, v.g.) é condenado (ilegalmente) em razão de um peculato.

Assim, nessa situação ao escriturário seria possível ajuizar um recurso que pudesse rever o mérito da decisão, nos termos do CPP 593 (cabe apelação contra sentença proferida por juiz singular), ao passo que para o ministro, o inconformismo jurídico acerca de questões fáticas seria impossível, vez que não há expressa previsão legal de apelação contra decisão proferida por um órgão colegiado (casos de competência originária de tribunal, in casu, Lei 8.038/90).

Se estamos sob a égide de um regime Constitucional, Democrático e Humanitário de direito, haveria razões a justificar essa situação que não prevê acesso à garantia do Duplo Grau de Jurisdição? Como assegurar a eficácia do Princípio da Ampla Defesa e da Isonomia aos detentores de foro funcional? A impossibilidade recursal não viola o Devido Processo Legal? Não haveria um desrespeito à Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)?

Desse modo há fica evidenciado uma inconstitucional restrição ou mitigação ao Princípio do Duplo Grau de Jurisdição no cenário jurídico brasileiro para o agente público que gozar do foro por prerrogativa de função.

II. Fundamentos do Recurso

De outro vértice, existem, pelo menos, três hipóteses fáticas a justificar a previsão de recursos no sistema processual penal de um país que segue as regras de uma Justiça Penal Principiológica: a) Falibilidade humana; b) Inconformismo (natural) do sucumbente; c) Evitar atos ilícitos e arbitrariedade do julgador.

Assim, regra geral, aquele que sentir-se prejudicado por ocasião da derrota em uma demanda, terá à sua disposição um meio jurídico que permitirá o reexame fático e de direito da decisão combatida, pois, é natural que (também) um réu que goze de foro por prerrogativa de função, sinta-se inconformado (não importa o motivo) com a insatisfatória decisão condenatória e manifeste lídimo anseio de ter a garantia e o direito de revisão de uma decisão contrária, a priori, aos seus interesses.

Não se vê nenhum argumento lógico e racional para limitar tal direito ao detentor de foro “especial”, pois, este também pode ser vítima de eventual erro judiciário ou eventual arbitrariedade do Colegiado prolator do acórdão condenatório. Assevera-se que o fato de o agente público já ser julgado por um órgão colegiado, já seria óbice ao impedimento de manifestação recursal, contudo, tal argumento não convence, pois, tal situação não possui o condão de elidir um direito consagrado em nossa Constituição (diga-se de forma implícita ou interpretativa, como será demonstrado em seguida).

Além disso, afirma-se que o Duplo Grau, impõe necessariamente uma jurisdição inferior e outra superior. Sim, isso não deixa de ser aceitável, contudo, devemos observar que nos delitos de menor potencial ofensivo (Lei 9.099/95) o recurso de apelação também é julgado por juízes de mesma hierarquia, isto pela Turma Recursal, conforme artigo 82 da Lei dos Juizados.

Veja-se o absurdo jurídico: Em caso de uma lesão corporal culposa (pena de até um ano de detenção) um réu qualquer poderia rever a condenação, levando seu inconformismo a juízes do mesmo nível, entretanto, em um caso de um delito de maior gravidade (Lavagem de Capitais e.g..), o agente público detentor de foro funcional, não teria o mesmo direito (em relação ao aspecto fático), ou seja, para um delito de menor potencial ofensivo (onde a ofensa ao bem jurídico não é tão relevante) opera-se o Princípio do Duplo Grau, mas, para um delito de maior ofensividade e repercussão jurídica e social, tal garantia estaria negada!

Mas então como solucionar tal problema?

Simples, nada impede que em situações como a apresentada, o detentor de foro “especial” seja julgado e processado por uma Turma ou Câmara do Tribunal respectivo, e seu eventual inconformismo quanto ao mérito, seja apreciado para um Órgão Especial ou o Plenário do mesmo Tribunal prolator do acórdão.

III. Regramento principiológico recursal

O Princípio do Duplo Grau de Jurisdição, fundamenta o recurso interposto pela parte sucumbente em matéria penal, havendo expressa previsão na Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica - que assegura ao condenado o “Direito de recorrer da sentença para juiz ou tribunal” (grifo pessoal), note-se a ausência de restrição ou limitação a quem quer que seja o condenado pela decisão judicial.

A Constituição Federal, em cláusula pétrea, assevera em seu artigo 5.º, parágrafo 2.º que: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (grifo pessoal), portanto o Pacto de San José constitui ao lado da Lei Magna, fonte de direito processual penal.

Hodiernamente já não se discute qual é a natureza jurídica dos Tratados de Direitos Humanos, isto é, não resta dúvida acerca de sua posição na “pirâmide jurídica”, conforme o firme posicionamento do ilustre Min. Celso de Mello, lido em 12 de março de 200, em uma ação de Habeas Corpus proveniente do estado de Tocantis (HC 87.585), no Pleno do STF, reconhecendo o status constitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos, assegurando assim, a paridade constitucional.

A Conseqüência de ordem prática é acalentadora, pois, os Tratados de Direitos Humanos (Pacto de San José, ad exemplum) não restringem os direitos e garantias previstos na Constituição Federal (CF 5, par. 2.º), ao contrário, amplia-os, e de outro lado, apenas a título de esclarecimento, se um tratado de direitos humanos, restringir ou eliminar um direito ou uma garantia inserta na Carta Magna, ficará sem efeito.

Em suma: aplica-se sempre a norma que mais for favorável ao acusado (Pro Homine)

O Pacto de San José da Costa Rica foi aprovado pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo n.º 27, de 25.09.1992), tendo o Brasil depositado sua Carta de Adesão, em 25/9/1992, tornando-se parte do nosso regramento jurídico em 06/11/1992 face o Decreto n.º 678, assim, necessário é concluir que o direito ao segundo grau de jurisdição (recurso de mérito), expressamente previsto no aludido pacto, encontra-se inserido em nosso ordenamento jurídico de maneira constitucionalizada, isto é, nenhuma norma jurídica pode negar-lhe aplicabilidade, e mesmo que por meio de uma Emenda Constitucional tente-se suprimir tal garantia, essa Emenda nem poderá ser apreciada pelo Congresso Nacional, pois, o Princípio do Duplo Grau (CF 5.º, parágrafo 2.º, c/c artigo 8.º, n.º 2, g, do Pacto de San José, e com o novo posicionamento da Excelsa Corte), é cláusula pétrea, pois, é um direito e uma garantia individual a todos os jurisdicionados, sem exceção, não importando se o acusado é uma pessoa comum, ou uma alta autoridade (Prefeito, Governador, etc), e assim não poderá ser objeto de deliberação pelo Parlamento, conforme artigo 60, parágrafo 4.º, Inciso, IV.

Para corroborar o aqui defendido a Convenção de Viena em seu artigo 27 prevê que “nenhum Estado que faz parte de algum tratado pode deixar de cumpri-lo invocando um Direito Interno”.

Portanto, o direito a um recurso que reveja toda a matéria (fática e de direito) está a proteger todos os jurisdicionados, restando claro a possibilidade jurídica de que qualquer jurisdicionado pode levar ao conhecimento de outra autoridade judiciária competente, seu inconformismo, visando a reparação e eventual error in judicando, dando plena eficácia ao princípio da Dignidade Humana.

Jorge Alexandre Karatzios é advogado criminalista e professor de Direito Penal e Processual Penal.


O Estado do Paraná, Direito e Justiça.

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