segunda-feira, 26 de maio de 2008

Artigo - Os 20 anos da Constituição e o processo penal

Certamente, um dia é pouco tempo para falar desses 20 anos da nossa Constituição, que no momento de sua promulgação representou para o nosso país um importante passo na caminhada que deixava para trás anos de ditadura militar e rumava na direção de um Estado Democrático.

Durante esses 20 anos, tivemos acertos que nos aproximaram de tal destino traçado pelos constituintes de 1988, cujos passos ainda inseguros, mas esperançosos, não desviaram da tarefa de juridicamente desenhar o mapa que nos levaria à concretização do sonho democrático.

Contudo, acredito que o balanço final não é positivo e sim negativo, os fracassos foram ainda maiores, pois temos a nítida sensação de que nos encontramos cada vez mais distantes do objetivo originalmente almejado.

No que diz respeito ao processo penal, a maioria dos direitos e garantias concebidos na Constituição de 88 continuam vilipendiados no dia-a-dia. A inquisitoriedade do sistema não permite a sua aplicação e vivemos num mundo paralelo, onde o discurso constitucional é ininteligível ou pior herético.

A presunção de inocência, assegurada no art. 5.º, LVII é substituída pela presunção de culpa, afinal não se pode esperar outro comportamento de um juiz gestor da prova que atua enredado em quadros mentais paranóicos e vive numa sociedade ainda marcada pela herança católica medieval que o faz pensar analiticamente e crer em verdades absolutas.

A ampla defesa e o contraditório, previstos no art. 5.º, LV, não se efetivam, já que a grande massa dos acusados provém das camadas menos favorecidas da população e não tem condições de contratar advogados tecnicamente preparados. Assim, sua defesa acaba sendo realizada por um defensor público, que não possui uma carreira estruturada, recebe um parco salário e tem um volume descomunal de causas. Enfim, a ampla se torna insuficiente defesa e o contraditório fica prejudicado.

A exigência de motivação das decisões jurisdicionais, estabelecida no art. 93, IX, é freqüentemente menosprezada nos juízos de admissibilidade das peças acusatórias, que não explicitam a presença das condições da ação e dos pressupostos processuais; nas decisões de decretação das prisões preventivas, principalmente quando se fundamentam na garantia da ordem pública ou econômica; na aplicação das penas, quando se aumenta a pena-base sob a justificativa de que o agente tem a personalidade voltada para o crime; ou ainda, no indeferimento dos pedidos de produção de prova, sob o argumento de que a convicção sobre o caso já está formada.

O princípio do juiz natural, assegurado no art. 5.º, XXXVII e LIII, é violado diariamente quando alterada a competência fixada no momento da consumação do delito, veja-se como exemplo, a competência por prerrogativa de função atribuída aos tribunais para o julgamento daqueles que exercem relevante função púbica. Atualmente, o prefeito que consuma o delito no exercício da função pública deve ser processado pelo TJ, contudo se o andamento do processo não lhe agradar, ele pode renunciar ao cargo para se eleger deputado federal, assim seu caso será enviado ao STF. Além disso, se o STF não lhe for favorável, ele pode novamente renunciar para ser processado pela justiça comum. Retorna-se à Idade Média, onde os privilégios de foro eram presentes que os reis concediam aos súditos em troca de apoio ou que a igreja concedia aos fiéis em troca de riquezas.

As prova ilícitas, vedadas no art. 5.º, LVI, são admitidas tanto para garantir a ampla defesa como para permitir a busca da verdade real, que se diga de passagem jamais será alcançada e só serve para legitimar os poderes instrutórios do juiz.

O direito ao silêncio, previsto no art. 5.º, LXIII, não ganha efetividade num processo de nuanças inquisitórias como o nosso e a presunção de culpa que assombra o julgador impõe a conclusão de quem cala, esconde algo ou de quem cala, consente com a acusação.

As nossas prisões não atendem ao disposto nos art. 5.º, III e XLVII, pois submetem os detentos a um tratamento degradante e cruel, além da tortura amplamente difundida nesses ambientes.

Enfim, acredito que este rápido panorama das violações da Constituição de 88 é suficiente para fundamentar o que pretendo concluir sobre os objetivos deste evento organizado pelo Curso de Graduação em Direito e pelo Programa de Mestrado em Direito da Unibrasil sobre os 20 anos da Constituição.

Ora, basta um pouco de perspicácia para perceber que nos desviamos do rumo, tomamos um atalho acidentado e o destino imaginado pelo constituinte de 88 resta cada vez mais longínquo, aparece-nos com uma miragem embaçada, não porque é impossível de ser alcançado, mas porque nos perdemos propositadamente numa das encruzilhadas e escolhemos outra vereda que nos afastaria do Estado Democrático e levaria ao conforto da globalização neoliberal.

Evidentemente, a democracia jamais se concretizará neste cenário em que o Estado se minimiza nas políticas sociais capazes de assegurar uma relativa igualdade e se hipertrofia na esfera penal para conter os excluídos desta globalização que só beneficia os que consomem.

Em suma, nós fraquejamos em algum momento, deixamo-nos levar pela propaganda neoliberal, que nos vendeu o sonho do consumo infinito, da tecnologia prêt-à-porter, do conforto do primeiro mundo no mercado da esquina, sem nos falar de suas nefastas conseqüências, das desigualdades abissais e da exclusão irrefreável.

Acreditamos nesta promessa, não por ingenuidade, mas por ganância, já dizia Etienne La Boétie, em 1553, que nos deixamos dominar porque trocamos a amizade política pelas riquezas.

Será que estamos satisfeitos com a escolha que fizemos? Esta é a pergunta que não cala e cuja resposta nos martela sempre que nos deparamos com a miséria, a fome e a violência dos excluídos. Evidentemente, não estamos satisfeitos e sabemos que a mudança desta situação depende de uma mudança de comportamento, temos consciência de que só retornaremos ao caminho traçado no mapa da Constituição de 88 se mudarmos de atitude.

Para tanto, precisamos primeiramente ter consciência do que acontece à nossa volta, precisamos saber a que estamos servindo agindo desta maneira, assentindo com esta exclusão. Só então poderemos pensar nos passos que precisaremos dar para voltarmos ao antigo rumo.

A realização do presente Congresso teve este objetivo, provocar a reflexão, a atitude crítica em relação às violações infligidas ao caro texto constitucional, isto é, neste curto dia, procuramos proporcionar à comunidade acadêmica e aos profissionais do direito um espaço de discussão, que deverá servir para a constituição das novas práticas que nos levarão em direção à sonhada democracia.

Discurso proferido no encerramento do Congresso “20 anos da Constituição”, realizado pelo Curso de Graduação em Direito e pelo Programa de Mestrado em Direito da Unibrasil, em 16/5/2008.

Clara Maria Roman Borges é mestre e doutora em Direito pela UFPR. Professora de Direito Processual Penal na Unibrasil. Coordenadora do Programa de Mestrado em Direito da Unibrasil. Professora Adjunta de Direito Processual Penal na UFPR.


O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 25/05/2008.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog