segunda-feira, 26 de maio de 2008

Artigo - "Um juiz pode, no exercício jurisdicional, infringir a lei?"

À primeira vista, parece ser uma pergunta simplória. Quase todas as pessoas que conheço responderiam rapidamente com um sonoro “não”, pois, afinal, como poderia um juiz deixar de aplicar o texto legal ou, o que é pior, infringi-lo? Todavia, ao me deparar com esta pergunta, feita por meu pai, a primeira resposta que veio à minha cabeça foi: “É claro que pode!”. Pensando melhor, percebo que se tratava de uma pergunta retórica, apenas para demonstrar sua indignação. Minha resposta com certeza afrontou sua mente analítica, própria de um engenheiro. Lembro com nitidez sua expressão de espanto e pude ver em seu rosto que pensava algo do gênero: “desperdicei cada centavo que investi na faculdade desta menina”.

Seu inconformismo apenas repetiu o sentimento de inúmeros cidadãos que não entendem como pode um juiz proferir uma decisão contrária à letra da lei e, “pior ainda”, o Tribunal não a reformar.

Tal sentimento é muito compreensível quando advindo de pessoa não afeta ao estudo das ciências jurídicas, mas totalmente repreensível se oriunda de acadêmico ou operador do Direito.

Explico o rigor de minha afirmação. Nenhum acadêmico consegue formar-se bacharel em Direito sem ter passado pela célebre discussão sobre “Direito e Justiça”, cujo deslinde se dá com a resposta a outra pergunta: A aplicação do texto legal garante que será obtida a Justiça?

Por óbvio, o conceito jurídico de “justiça”, por si só, é tema de incontáveis teorias, livros e artigos. Entendo que a Justiça é alcançada pela divisão isonômica de direitos a todas as pessoas. “Isonômica” porque não se pode fazer a divisão igualitária entre todos, pois as pessoas diferem-se umas das outras por diversas características e justo é tratar igual aqueles que são iguais e tratar desigualmente aqueles que são desiguais. Exemplificando: Ao senso comum, parece justo que apenas os 88 primeiros colocados no vestibular de direito da UFPR sejam aprovados para cursar a faculdade pública, pois eles têm mérito em terem sido os 88 melhores. Parece justo que os idosos, gestantes e deficientes tenham atendimento prioritário, pela sua condição. Parece justo que os criminosos sejam encarcerados porque cometeram delitos. Assim, a justiça é alcançada pelo tratamento igualitário que damos àqueles que se encaixam na mesma categoria de pessoas e pelo tratamento desigual dispensado às diversas categorias de pessoas.

Dito isso, voltamos à busca de argumentações que fundamentem a resposta que dei a meu pai e mostrem-no que a faculdade valeu à pena. Para tanto, farei uma sucinta análise da evolução histórica da chamada “Teoria do Estado”, iniciando na Baixa Idade Média, marcada pela existência dos Estados Absolutistas Monárquicos.

Nos Estados Absolutistas Monárquicos, como o próprio nome já diz, o Poder dos monarcas era absoluto. O Rei concentrava em suas mãos a Administração, a Jurisdição, bem como a elaboração das leis. Neste período o modelo de pensamento era o Teocentrismo, no qual Deus é a origem e razão de ser de todas as coisas, garantindo à Igreja um Poder incomensurável. O monarca estava apoiado na Igreja e era entendido como uma extensão do Poder Divino, justificando-lhe poderes ilimitados para fazer e desfazer as leis como melhor lhe conviesse. Assim, apesar de existirem leis, as pessoas não detinham quaisquer direitos. Vida, liberdade e patrimônio eram dádivas do rei que poderia dispô-las a qualquer tempo, de modo que o Direito Penal, por se tratar de mera forma de controle social, servia apenas aos interesses do monarca e da Igreja. A Santa Inquisição foi expressão máxima do Poder Absolutista Monárquico fundado na Influência da Igreja e retrata bem a idéia de que a existência de leis não propiciou o alcance da justiça, muito antes pelo contrário.

O Estado de Direito, sobrepujou-se ao Estado Absolutista Monárquico justamente pela total ausência de garantias aos cidadãos característico deste último. Algumas pessoas começaram a acumular riquezas e patrimônio, mas tanto o patrimônio, como sua vida e liberdade, poderiam lhes ser tirados pelo Rei sem motivo justo. Emerge a necessidade de construção de um novo modelo de Estado no qual o poder real fosse limitado. A principal corrente filosófica da época, o iluminismo, defendia um discurso que, por representar o interesse dos burgueses, torna-se hegemônico e acaba por destituir o discurso absolutista teocêntrico.

O individualismo, presente já na obra de Descartes em 1637, representado pela célebre frase “penso, logo existo” impulsiona toda a transformação do pensamento da época. Ressurge o Antropocentrismo tão marcante na Antiguidade e abandonado durante a Idade Média. A fim de limitar o poder estatal, são desenvolvidas algumas premissas basilares deste modelo de Estado, quais sejam: o Jus naturalismo, segundo o qual direitos como vida, liberdade e patrimônio são inatos aos seres humanos; a tripartição de poderes; o contratualismo e; a legalidade. A idéia era limitar o poder do Rei e assegurar direitos aos cidadãos. Desse modo, o jus naturalismo serviu como limite externo à atuação estatal, enquanto a tripartição de poderes limitou internamente o poder do estado, dividindo-o. A idéia do contrato-social serviu para justificar o novo modelo estatal no qual as pessoas nascem com direito à vida, patrimônio e liberdade, mas precisam do Estado para proteger tais direitos e cedem-lhe uma parcela de suas liberdades a fim de alcançar a paz social. E, por fim, a idéia de legalidade, segundo a qual as ações do Estado devem obedecer às leis. As leis, portanto, estão acima de tudo e de todos, o que deu um poder exacerbado para os legisladores. Aos juízes era proibido interpretar o texto legal, culminando com a máxima de Montesquieu “O juiz é a boca da lei”. Por tal motivo, a ideologia iluminista sempre serviu aos governantes, pois todas as suas ações seriam justificadas desde que houvesse uma lei que o fizesse. O discurso de Kelsen em “Teoria Pura do Direito” demonstra claramente que, no Estado de Direito, não poderia haver qualquer discussão quanto ao conteúdo das leis. Se estas eram justas ou não. Para Kelsen, desde que seguidos os requisitos formais de elaboração, uma lei, independente de seu conteúdo, era válida e deveria ser aplicada sem restrições.

No fundo, a motivação dos iluministas foi esquecida, cedendo-se, mais uma vez, poderes ilimitados ao Estado. E, através do discurso da legalidade, foram chancelados governos tiranos como o de Hitler, Mussolini e todos os governos militares da América Latina. Todas as 12 milhões de mortes durante o período nazista foram, do ponto de vista do Direito Alemão, absolutamente legais, mas, do ponto de vista de qualquer pessoa sensata, absolutamente injustas.

Não há garantia de justiça em um modelo de Estado baseado apenas na legalidade. Os verdadeiros fundamentos do iluminismo foram deixados de lado e os direitos fundamentais dos cidadãos foram violados. A tripartição de poderes foi comprometida e a teoria do contrato social adotada foi a pior de todas, a de Thomas Robbes, segundo a qual os cidadãos abrem mão de todos os seus direitos em favor do Estado para obterem a paz. Mesmo neste modelo de contrato social, o Estado não cumpriu o seu papel.

No Brasil, acredito estarmos ainda em trânsito entre o Estado de Direito e o Estado Democrático de Direito. Com a Constituição Federal de 1988 demos um “grito de liberdade”. Como gato escaldado tem medo de água fria, tratamos de descrever minuciosamente tudo o que nos é caro: Cidadania e Dignidade da Pessoa Humana foram elencadas como fundamentos da República já no artigo 1º. Independência e Harmonia entre os Três poderes estão no artigo 2.º. No artigo 3.º, destacamos nossos objetivos de promover o bem de todos, banir a discriminação e as desigualdades, acabar com a pobreza e com a marginalização, construindo uma sociedade livre, justa e solidária. Ao artigo 5º reservou-se colacionar os Direitos Fundamentais de todos os brasileiros e de todos aqueles que estiverem em nosso território. São 78 incisos descrevendo formas de concretizar a proibição de violação à vida, liberdade, igualdade, segurança e propriedade. Sem falar na constitucionalização dos Direitos Humanos previstos em Tratados Internacionais. É de chorar, de tão lindo! Sem ironia. E para melhorar, temos inúmeras inserções que buscam o bem estar social e, não apenas o bem estar individual defendido pelos iluministas. Pois o discurso iluminista era bom mesmo para aqueles que detinham alguma riqueza e tinham oportunidade de acumulá-las. Era o embrião do capitalismo. O problema é que o capitalismo puro, como podemos observar da janela de nossas casas e nossos carros, não dá tão certo como se imaginava. Nosso constituinte já tinha observado isso em 1988 e previu direitos sociais como saúde, educação, moradia, lazer e direitos dos trabalhadores, assim como institutos que limitam o direito patrimonial, como a função social da propriedade.

Lendo a Constituição não entendemos o porquê de nosso país ser como é. E aqui está a resposta à pergunta de meu pai. As leis não nos garantem nada. Inclusive porque boa parte das leis mais importantes do Brasil são anteriores à nossa Constituição e, portanto, não seguem a mesma linha filosófica, por assim dizer. O Código Penal (aquele que define o que é crime ou não e quanto tempo você passará na cadeia) é de 1940; o Código de Processo Penal (que define se você pode ser preso antes de ser julgado, as formas de provar sua inocência, ou como você pode ser condenado) é de 1941, ambos espelhados nos Códigos Fascistas de Mussolini; o Código Tributário é de 1966 e o de Processo Civil é de 1973. Ou seja, temos inúmeros artigos legais que são contrários aos princípios Constitucionais, pois a Constituição é de 1988.

Olhando de fora, não parece haver qualquer impasse, pois se Constituição vale mais que qualquer lei e nela estão previstos todos os nossos direitos invioláveis, é só aplicar a lei constitucional que estaremos salvos. Do ponto de vista teórico, esta é a mais pura verdade. E, então, surge a inexorável pergunta: “Mas porque não é assim?” A resposta pode ser resumida em uma palavra: LEGALISMO.

O legalismo nos mantém no limbo: entre o Estado de Direito e o Estado Democrático de Direito. A aplicação literal do texto da lei em detrimento da Constituição e dos Direitos Humanos não nos permite alcançar o nosso ideal de justiça. O excesso de medidas provisórias por parte do Executivo afronta a Tripartição de Poderes, compromete a criação de novas leis e os legisladores pouco se mexem para elaborar leis que representem o interesse da população. A parcela de culpa do Judiciário é o legalismo, por um indiscutível amor ao texto legal e sua conivência em face às repetidas violações à Constituição Federal. Quando me refiro ao Judiciário incluo também o Ministério Público, os Advogados, os funcionários e serventuários da justiça, como operadores do Direito, mas são as decisões judiciais que avalizam as argumentações legalistas.

No Estado Democrático de Direito, o juiz não pode ser “a boca da lei”, como um mero concretizador das vontades do legislador. O juiz tem um papel fundamental na consolidação do Estado Democrático de Direito: ser guardião dos direitos fundamentais. Se os magistrados se furtam do exercício de sua principal função de zelar pelos direitos fundamentais, estaremos fadados a repetir os terrores do Estado de Direito.

No Brasil, pelo controle de constitucionalidade difuso, todos os juízes devem analisar a validade das leis tangíveis aos casos levados a sua apreciação, ainda que sem provocação direta das partes. O problema é que o próprio Supremo Tribunal Federal tem dificuldades em aplicar certos dispositivos da Constituição, bem como Normas Internacionais de Diretos Humanos, pois é mais seguro aplicar o texto legal que se aventurar em uma interpretação constitucional das leis. Evidentemente não são todos os magistrados que agem desta forma. Eu tenho o prazer de conhecer e tenho notícia de vários juízes, promotores e advogados que enfrentam a norma e buscam a Justiça através dos ideais constitucionais, mas, infelizmente, ainda não são muitos. É preciso que todos os operadores do direito sejam fiéis à Constituição, em prol de alcançarmos o Estado Democrático de Direito.

Deste modo, afirmar que os juízes devem apenas aplicar as leis acarretaria ter plena confiança de que o legislativo representa, de fato, o povo e as leis que aprovam são, de fato, a expressão máxima da vontade popular.

Não defendo que os juízes devam agir arbitrariamente, infringindo leis e fazendo o que lhes der na cabeça. Suas decisões devem estar atreladas sempre aos princípios fundamentais e aos direitos humanos, os quais se encontram insculpidos na Constituição Federal e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Acredito, portanto, que os magistrados não estão vinculados à aplicação literal das leis, mas, sim, à aplicação dos direitos mais importantes e intrínsecos ao ser humano e que, de modo geral, estão normatizados.

Assim, os juízes não estariam efetivamente infringindo a legislação, mas aplicando-a de forma mais coerente com normas superiores e, desse modo, chegando mais próximo de alcançar a nosso objetivo de fazer justiça.

Melina Pugnaloni é assessora no TJ/PR. Pós-graduanda em Direito Criminal pela Unicuritiba.


O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 25/05/2008.

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