sexta-feira, 9 de maio de 2008

Drogas no séc XXI: penas pedagógicas para usuários




Não faz tanto tempo, “Cigarros Índios” da marca Grimault eram vendidos em tabacarias, enunciados contra insônia, asma e outros males respiratórios. Heroína e outros opiáceos eram servidos em hotéis especializados. Balas de cocaína estavam nas estantes das farmácias, assim como anfetaminas e mais drogas hoje proibidas.

Usá-las era chique, coisa da alta sociedade. Quando alguém ficava com o comportamento alterado, a família levava para uma temporada de desintoxicação no Sanatório Botafogo e depois a pessoa voltava ao convívio social.

O cenário, descrito em detalhes no livro Vícios Sociais Elegantes, de Adauto Botelho, de 1937, foi remontado na quinta-feira (8), pelo psiquiatra forense Talvane de Moraes, em palestra na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj). Convidado para debater sobre o tema "Desafios do sSéculo XXI - política de drogas", Talvane , que tem formação em Medicina e Direito, abordou a questão dos pontos de vista histórico/jurídico e médico/psiquiátrico.

Ele explicou que nas primeiras décadas do século XX não havia normas proibitivas. A tipificação e a criminalização de "condutas contra a saúde pública" com pena de prisão só surgiram em 1932, no governo Vargas - antes era multa. “Em 36 e 38, começa uma caça às bruxas: quem tiver contato com a droga será penalizado”, contou.

Em 1940, o Decreto-lei 2.848, no artigo 281, criminaliza o comércio clandestino e a facilitação ao uso de entorpecentes. “Mas não se fala em uso nem dependência. Não se pune quem usa ou é viciado. Pune-se quem trafica”, frisa.


Repressão ao usuário começa no regime de exceção

Só em 1968, durante o regime de exceção, o usuário passa a ser criminalizado, com o Decreto-lei 385. No ano anterior, as anfetaminas haviam sido proibidas e igualadas aos entorpecentes, como “substâncias capazes de causar dependência”. Em 1971, a Lei 5.726 obrigou a internação psiquiátrica do dependente. Vejam o absurdo da lei. Acharam que era uma questão de mão forte”, critica o médico.

Ele destacou duas “excrescências” da lei: todo médico que internasse um paciente para desintoxicação deveria comunicar à autoridade sanitária, nomeando o paciente, o que vai contra a ética médica. Da mesma forma, escolas deveriam denunciar alunos envolvidos com drogas.

Mas, tanto na Saúde quanto na Educação, o problema se resolveu sozinho, com o silêncio dos médicos e professores. “Nas estatísticas de 1971 a 1976 não se encontra um caso sequer de dependência. Os médicos davam outros nomes aos casos. O poder ditatorial acha que as pessoas não pensam?”, questiona o especialista.

Para Talvane de Moraes, essa repressão reflete o discurso norte-americano da década de 50 sobre a necessidade de controle às drogas ilegais. “Era um discurso coeso, reproduzido na América Latina, de que a droga estava destruindo a juventude”, lembrou.



Usuário não é traficante

Em 1976, a Lei 6.368 representou a primeira tentativa de se diferenciar o traficante do usuário e do dependente. A discussão foi aberta com a sociedade, e uma comissão ouviu psiquiatras, antropólogos e outros especialistas. Foram instituídas três penas diferentes: para traficantes e usuários, penas de detenção; para dependentes, internação. Na opinião do psiquiatra, entretanto, a internação só deveria acontecer por indicação médica, e não judicial.

A pena de prisão do usuário só caiu mais de 20 anos depois, com a Lei 11.343, de 2006, que, para Talvane, é a quem mais adequada à visão médica. “O Direito Penal moderno foge da idéia medieval de que todo remédio penal é cadeia. O legislador foi corajoso”, elogiou. Ele também destacou a inovação da lei ao permitir o plantio para uso próprio.

As penas para o usuário previstas pela nova lei são: advertência sobre o efeito das drogas; prestação de serviços à comunidade; e medida educativa de comparecimento a programa ou curso. “A cadeia deve ser uma excepcionalidade. É muito mais eficaz oferecer cursos e palestras para um jovem do que colocá-lo em Bangu 1. Qualquer pessoa com bom senso vê isso”, afirmou o psiquiatra forense.

De acordo com ele, o uso compulsivo de drogas está ligado a dificuldades existenciais e de superação de frustrações, e as pessoas que o fazem precisam de ajuda, não de punição. Ele explica que a droga estimula o centro de recompensa do cérebro, que é a base fisiológica de todas as sensações prazerosas, como bem-estar, euforia e alegria e até orgasmo.

O problema, segundo o médico, não é a droga em si, já que a dependência acontece em uma pessoa com um conjunto de condições específicas, e isso é subjetivo. Ele acrescentou que a Organização Mundial de Saúde está atenta para outros comportamentos compulsivos, como a compulsão por sexo, internet, exercício físico, compras ou jogo, e vai colocá-los junto com o abuso das drogas sob o rótulo de dependências.



Conseqüências do álcool são as piores

Talvane de Moraes enfatizou que a droga cujo uso mais provoca comportamento violento é o álcool, liberado por razões culturais, ultrapassando todas as outras juntas. Ele explicou que o álcool desinibe as pessoas, e por isso é tolerado pela sociedade.

Uma pesquisa do psiquiatra Elisaldo Carlini realizada em 91 mostrou que cerca de 25% dos brasileiros já experimentaram algum tipo de droga. "A sociedade, de um tempo para cá, resolveu demonizar as drogas, que causariam o flagelo social. Como acadêmicos, não podemos estar presos a preconceitos que distorcem a realidade", criticou.


Nova legislação enfrentou preconceitos

O presidente do Fórum Permanente de Execução Penal da Emerj, desembargador Álvaro Mayrink da Costa, que coordenou a mesa, afirmou que para mudar a pena do usuário, a lei brasileira teve que enfrentar vários preconceitos. Para ele, penas morais de advertência e admoestação terão um bom efeito.

“O Direito Penal do futuro caminha para penas menos aflitivas e mais didáticas. As penas privativas de liberdade não atingem os seus fins. As penas de caráter pedagógico são mais objetivas. É esse o caminho do século XXI”, concluiu.

O desembargador disse estar surpreso com as liminares que impediram a realização das marchas da maconha em diversos estados numa sociedade pluralista, num estado democrático de direito em que a Constituição diz que é livre a manifestação do pensamento. Para ele, as marchas não seriam uma apologia ao crime ou à disseminação das drogas, mas uma oportunidade para a troca de idéias em busca do melhor para a sociedade.

"Precisamos saber lidar com as diferenças de pensamento. A sociedade se desenvolve em meio à pluralidade de idéias. As pessoas podem discutir sobre aborto, divórcio, eutanásia, jogo, e isso não é apologia ao crime, mas sim a discussão de políticas profundas da vida de uma sociedade", defendeu. Para o magistrado, sem reflexão teremos que ficar condicionados a "políticas alienígenas".

Talvane de Moaes concorda. Para o psiquiatra, este é o século do reconhecimento da humanidade, da conscientização de que as pessoas são diferentes e da atenção à diversidade. Ele acredita que dispositivos de ponderação individual ainda serão introduzidos na legislação, e que caberá ao juiz reconhecer as diferenças, adequando as doses das penas e sanções. Para ele, a nova lei "faz a ponte entre a liberação e a repressão autoritária", mas outras mudanças de postura em relação às drogas ainda ocorrerão no século XXI, progressivamente.


Comunidade Segura.

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