domingo, 11 de maio de 2008

Mais comida - e muito mais comensais




Mesmo com a fartura de alimentos, há bocas passando fome. Como fechar essa conta?

A crise da comida é uma contradição: os preços explodem no momento em que a quantidade de alimentos por pessoa é 24% maior do que há 40 anos. A oferta de calorias diárias por habitante passou, nesse intervalo, de 2.360 para 2.803, enquanto a população saltava de 3 bilhões para 6 bilhões. A produtividade de cereais mais que dobrou: por hectare, subiu 150%.

Como explicar a disparada de preços se a oferta aumentou mais que a população? A primeira resposta é que boa parte dessa oferta está sendo disputada por gente que não participava do mercado por falta de renda. Em 1965, a porcentagem da população mundial que vivia em países com disponibilidade média de calorias abaixo de 2.200 era de 57%; agora, é de apenas 10%. A melhoria se concentrou na China, Índia, Brasil e Indonésia, quase metade da população do planeta.

Ainda sobraria muito alimento se uma proporção crescente não fosse desviada para biocombustíveis, em especial nos EUA. A responsabilidade do etanol de milho é clara. Até 2005, quando entrou em vigor a lei americana sobre o etanol, o preço da tonelada de milho era de US$ 85. Em dois anos, pulou para US$ 250.

A colheita de milho cresceu 24% em 2007 (330 milhões de toneladas), a maior desde 1933. No entanto, quase 25% se destinaram ao etanol, não à cadeia alimentícia. O aumento foi conquistado, em parte, em detrimento da soja e do trigo, que também encareceram em conseqüência.

Seria menor a pressão sobre alimentos se parcela substancial do etanol fosse importada do Brasil, onde o produto não concorre com comida (o açúcar é dos poucos alimentos cujo preço pouco mudou). Isso não ocorre porque o protecionismo leva os EUA a impor barreira de US$ 0,51 sobre o galão (3,8 litros) do etanol importado (na Europa é pior: o imposto é de US$ 0,70).

Em tese, preços altos deveriam induzir ao aumento da oferta e a alimentos mais baratos, o que, de fato, começa a ocorrer em certos casos. O preço do trigo, por exemplo, despencou 40% nos últimos dias, em relação ao pico de fevereiro. A lei do mercado, todavia, não funciona bem se há interferências oriundas de limites físicos à produção e de distorções de mercado e subsídios.

Os limites físicos resultam de três fatores: aquecimento global; degradação do solo e escassez de água; preço do petróleo e fertilizantes. Tome-se o caso do arroz, cujo preço explodiu 130% nos últimos meses. De dez anos para cá, a freqüência dos grandes desastres naturais, em particular furacões, secas e inundações catastróficas, aumentou em média de 20 para 40 por ano. As principais zonas produtoras asiáticas foram afetadas por um ou outro desses desastres em 2007.

No caso da Austrália, a seca de seis anos provocou queda na colheita de arroz de 98%. Exigente em água, o arroz foi abandonado por muitos, que venderam os direitos de água, mais importantes que a terra naquele país. É provável que a queda de produção se torne permanente, pois a água foi para culturas mais rentáveis, como a da uva para vinho.

Por sua vez, a degradação dos solos, incluindo a erosão e perda de nutrientes, já está causando declínio de produção em 20% das terras cultiváveis, um quinto do total. Em áreas tropicais da África e América Central é muito mais grave, chegando a 70%. A migração para solos em declive acelera a degradação.

Quanto à água, 50 anos atrás se retirava dos rios para irrigação apenas um terço da quantidade atual. Do total da água doce utilizada, 70% vão para irrigação e são recuperados apenas entre 30% e 60%. Cada ano perde-se 1,5 milhão de hectares de solo devido à salinização, calculando-se que 45 milhões já tenham sido danificados. Ao mesmo tempo, 1,6 bilhão de pessoas sofrem de escassez de água.

Como se não bastassem os obstáculos ambientais devidos ao clima, ao solo e à água, o estrago recebeu contribuição apreciável da desvalorização do dólar e do aumento do petróleo. O efeito se manifestou, antes de tudo, nos preços dos fertilizantes, já pressionados pelo crescimento da demanda. Alguns dos adubos são derivados do petróleo e acusam o efeito de modo direto. Outros, como os fosfatos, provêm de poucas zonas produtoras. Resultado: os fertilizantes em 2007 aumentaram entre 100% e 200%. O petróleo, é óbvio, também encarece toda a cadeia de transporte de alimentos, de adubos, defensivos, etc.

Dentre as distorções econômicas, um fator típico do nosso tempo é a especulação dos fundos nos mercados de futuros, onde às vezes 40% dos contratos correspondem a esse tipo de manipulação financeira. As quantias movimentadas pelos fundos chegam, em certos casos, a dez vezes mais que os volumes físicos, negociando-se até os chamados "índices de volatilidade".

Os subsídios, sob fogo cerrado há décadas, encontram na crise alívio inesperado. É que os estoques de cereais atingiram o nível mais baixo em 20 anos, caindo de 471 milhões para 428 milhões de toneladas. O clima só respondeu por 2% da redução total de 9%, o que vai permitir aos advogados dos subsídios dizerem que na época áurea das subvenções havia montanhas de cereais e lagos de leite.

De fato, no passado, os subsídios eram ligados à quantidade produzida: quanto mais produzia, mais ganhava o agricultor, sem se importar com o preço internacional, compensado pelos pagamentos do governo. A partir de 1992, começou-se, sobretudo na Europa (os americanos, após um bom início, foram no sentido oposto), a desvincular os subsídios da quantidade, pagando-se até ao agricultor para deixar a terra ociosa. Aos poucos as reservas minguaram até chegar ao perigoso limite atual.

É verdade que os estoques representavam uma válvula contra as quebras de colheita. Por outro lado, os excedentes eram escoados por meio de doações ou a preços simbólicos para países pobres, onde liquidavam a agricultura local e as agrondústrias de conservas. Criava-se dependência permanente de fornecimentos externos que podiam ser interrompidos a qualquer momento, como agora.

Toda vez que há pânico por falta de comida renasce a tese da auto-suficiência alimentar. Ela surgiu como medida de segurança após as duas guerras mundiais, pondo fim à era do comércio livre em alimentos, de 1870 a 1914. Essa foi a "era das vacas e do trigo" para a Argentina, 4ª potência econômica mundial no princípio do século 20.

Desde então, graças às barreiras aduaneiras e aos subsídios maciços, quase todos os países industriais, exceto o Japão, deixaram de ser importadores líquidos de alimentos e se transformaram em grandes exportadores subvencionados.

A auto-segurança alimentar será a nova arma do protecionismo para frear o avanço da liberalização nas negociações comerciais. Seus defensores buscarão assustar os países pobres importadores líquidos de alimentos com o fantasma do aumento dos preços agrícolas, que deverá, numa primeira hora, acompanhar a eliminação dos subsídios.

Não tardará muito para que a expansão da oferta supere alguns dos gargalos do momento, embora a pressão sobre os preços continue a se fazer sentir por obra de fatores como o petróleo, o dólar, os especuladores, os limites físicos ambientais. O real desafio será o de alimentar os 9,2 bilhões de indivíduos que deverão habitar a Terra em 2050.

Hoje em dia, a agricultura fornece 93% das proteínas e 98% das calorias, empregando 1,3 bilhão de pessoas. Calcula-se que o aumento da população e a melhora da dieta vão dobrar a demanda de carne e expandir em 75% a de cereais, provindo dos países em desenvolvimento três quartos do crescimento. Só de adubos, será preciso saltar dos 135 milhões de toneladas de 2000 para 190 milhões em 2030, o que significa gigantesca pressão sobre a limitada oferta de fertilizantes.

Não será menor a concorrência por solo e água entre plantas e animais. A fim de produzir 1 caloria de ovo ou leite, necessita-se de 4,5 calorias de plantas; para 1 caloria de carne bovina ou ovina, a necessidade é de 9 calorias vegetais.

A capacidade dos ecossistemas de que dependemos está sendo testada no limite. A área plantada, que era de 265 milhões de hectares em 1700, expandiu-se para cerca de 1,6 bilhões de hectares, com as pastagens chegando a 3,4 bilhões de hectares em 1995. A disponibilidade de terras aráveis é cada vez menor, a expansão tendo de ser feita à custa da destruição de florestas e aumento do risco de aquecimento global. Como resolver essa difícil equação?

Parte da resposta há de vir da tecnologia. A produtividade agrícola explodiu entre 1950 e 1995: multiplicada por 8, cresceu mais em 45 anos do que nos 9 mil anos entre a invenção neolítica da agricultura e a 2ª Guerra Mundial. O problema é que, desde 1980, os investimentos públicos em pesquisa, responsáveis pela revolução verde, pararam de crescer, cedendo espaço ao setor privado. A pesquisa passou a ser dominada pelas transnacionais de sementes e transgênicos, orientando-se mais pelo lucro.

A Embrapa, no Brasil, foi das poucas exceções. Mesmo aqui, boa parcela da pesquisa foi canalizada para a grande agricultura de exportação. O que não tem nada de errado nem surpreendente, pois empresas intensivas em capital dispõem de melhores condições para aplicar novas tecnologias. Contudo, será indispensável compensar tal vantagem econômica por uma atenção maior à pesquisa destinada à agricultura familiar e em pequena escala.

É esse tipo de agricultura que responde por importante proporção da produção de alimentos, no Brasil e no mundo. Em nosso país, alimentos básicos como o feijão e a mandioca não atraem os grandes grupos, concentrados na exportação (soja, suco de laranja, açúcar e etanol). Em tese, deveria existir não oposição, mas complementaridade entre as duas modalidades, como se vê na relação entre esmagadores e fornecedores de laranja ou processadores e criadores de suínos e aves, embora haja sempre um diferencial de poder contratual em favor dos grandes.

A agricultura intensiva em capital e tecnologia dará contribuição de relevo na superação da crise de alimentos. Seria simplismo, no entanto, crer que terá o papel principal. A razão é simples: as áreas rurais onde vivem 75% dos pobres do mundo (90%, na África) não possuem renda para pagar o preço das importações. A solução só poderá vir do estímulo ao crescimento da produção de alimentos nessas próprias áreas, com apoio maciço em pesquisa, educação e investimentos em infra-estrutura. Como sucedeu sempre na história, a agricultura terá de dar de comer a todos e ser a alavanca do desenvolvimento dos países pobres.

*Rubens Ricupero é diplomata. Foi ministro da Fazenda e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento.


Estadão.

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