domingo, 11 de maio de 2008

Moradores de rua tentam sobreviver na capital

"Uma das coisas mais difíceis para quem mora na rua é passar a noite. A insegurança que ela traz. A hora das refeições também é angustiante. Sentir o cheiro, ver a comida sendo feita nas lanchonetes. Na rua, a gente aprende a viver de improviso”. A frase, do ex-morador de rua Fernando de Góes, que hoje coordena a chácara-abrigo para garotos de rua Meninos de 4 Pinheiros, em Mandirituba, Região Metropolitana de Curitiba, pode resumir em parte o dia-a-dia das pessoas que vivem nessa condição. Para ele, o ato de puxar o cobertor à noite não pode ser feito sem antes pensar naqueles que não têm um para dormir nas calçadas frias de Curitiba. “Falta ao poder público e à sociedade dar atenção a eles”, acredita o voluntário.

Recentemente, a população voltou os olhos para esta parcela de moradores que compõe a paisagem da cidade, mas é freqüentemente esquecida ou recriminada. Os moradores de rua foram contabilizados em 2,7 mil pelo Ministério do Desenvolvimento Social na capital paranaense, número que colocou a cidade proporcionalmente em segundo lugar no ranking brasileiro com mais população em situação de rua. O número foi contestado pela prefeitura, que aponta 1.095 pessoas nessas condições.

Mas a realidade é que a contabilidade pouco importa para quem conhece o que vivem as pessoas que não têm casa para morar. “Cansei de ver criança não conseguir dormir à noite, chorando de fome. Por parte dos governos, faltam políticas públicas específicas para quem mora na rua. Da parte da população, existe muito descaso. Já vi pessoas jogando água quente em meninos que dormiam embaixo de marquises para que saíssem debaixo de seus prédios”, lembra Góes.

Os seis anos em que dividiu as noites entre o pequeno barraco que tinha numa favela de Curitiba e as ruas foram por vontade própria. O menino pobre, filho de bóias-frias que trabalhavam no norte do Paraná, decidiu ir para o seminário, estudou filosofia, teologia e teve contato com grandes nomes da causa social no Brasil, como Paulo Freire. “No seminário, eu saía do convento nos fins de semana e ia ficar com os moradores de rua. Isso me ajudou a definir minha bandeira de luta”, conta.

Os anos nas favelas, somados à mobilização da comunidade em que vivia, deram origem à ONG onde há 15 anos Fernando de Góes cuida de 80 meninos vindos da rua, em situação de extremo risco, com recursos advindos de prefeituras, instituições e empresas. Mesmo assim, ele confessa: “Meu grande sonho é voltar a morar na rua. Não consigo conviver em paz com a idéia de que, apesar do que faço, ainda existem tantos outros vivendo nessa situação”.

Cada um aprende uma lição

As pessoas que vivem nas ruas têm diferentes perfis e concepções de mundo. “Durante a pesquisa, chegamos a conhecer um médico, um engenheiro, alguns advogados e até uma pessoa que pertencia a uma família tradicional de Curitiba”, conta Ana Maria Saab, que coordenou o levantamento do Ministério do Desenvolvimento Social na cidade. E embora não seja este o caso da maioria, percebe-se que a rua, de certa forma, passa a ser inseparável de quem não encontrou outra saída senão a liberdade.

É o caso de Ubiraci de Lima, 32 anos, há 15 morando nas ruas. Por problemas familiares, deixou a casa em que morava e nunca mais quis viver debaixo de um teto.

O sustento, tira da prostituição.

“O que decidi é que queria viver dignamente, sem roubar. E nunca precisei fazer isso morando nas ruas. Hoje costumo dizer que minha TV é o céu e as pessoas são as estrelas”.

Transformista, já ganhou o suficiente para fazer cirurgias plásticas, todas em clínicas particulares. Também já passou medo na rua, onde diz ser preciso “dormir de olho aberto”. “E muita gente já me convidou para morar numa casa. Mas eu não aceitei”, enfatiza. O sonho de Ubiraci, embora pareça distante de sua realidade, não é irrealizável. É igual ao de Fernando de Góes, que cuida dos meninos de 4 Pinheiros. “Quero ter uma fazenda bem grande e colocar o máximo de pessoas sem teto lá dentro”, ensina. (LM)

Leis são recentes

As leis que voltaram os olhos para as populações de rua são recentes. A coordenadora da Central de Resgate Social da Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS), Roseli Muraski, lembra que a lei orgânica da Assistência Social foi editada em 1994. Mas só dez anos depois as ações avançaram com a implantação do Sistema Único de Assistência Social (Suas).

“Essa era uma população bem desconhecida, e ainda é. As políticas sempre foram muito fragmentadas. Priorizou-se primeiro a criança e o adolescente”, afirma. Muitos deles, no passado, crianças advindas de instituições, desassistidas após os períodos de internamento.

Mas o trabalho de conhecer quem são os moradores de rua, e reinserí-los na família e na sociedade, nem sempre é uma tarefa fácil. “Se de cada cem recuperamos dois, já é um tremendo sucesso”, afirma Roseli. (LM)


O Estado do Paraná.

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