terça-feira, 6 de maio de 2008

Na Bélgica, pais freqüentam curso para resolver problema do filho infrator

Para tratar do problema de jovens que cometem ato infracional, a Bélgica recentemente lançou uma proposta inovadora, que poderia funcionar também no Brasil. Focalizar a ação do governo não apenas no adolescente, mas, sobretudo, nos seus pais. Em vez de uma medida repressiva, opta-se pelo diálogo com os pais para recuperar o(a) filho(a) e revalorizar o convívio familiar e, com isso, evitar a reincidência do(a) jovem no crime.

Trata-se de um projeto piloto em que os pais devem, por ordem do juiz da juventude, freqüentar um curso com duração mínima de 30 horas, sendo que parte desse tempo é destinado para sessões em grupo – com a presença de outros pais e, muitas vezes, do(a) próprio(a) adolescente.

Esta medida, no entanto, não se dá de forma isolada. Em paralelo, existe também o serviço de apoio ao público jovem, que ocorre em sintonia também com a escola.

Conversa – Segundo Michel Amand, coordenador de uma instituição chamada Pensionnat Henri-Jaspar, à qual é ligada a ONG Affiliations, que oferece o curso, o processo de convocação ocorre da seguinte forma: uma autoridade, que pode ser o procurador do Rei (a Bélgica é monarquista), o juiz da juventude ou o diretor do Serviço de Proteção Judiciária, deve convocar os pais de adolescentes infratores para uma conversa. Nessa convocação não está explícito o motivo da convocatória.

Chegando lá, os pais entram em uma sala onde estão presentes o juiz ou a autoridade que representa o Rei e um profissional da ONG que promove o curso. O juiz ou procurador do Rei tem sobre sua mesa um dossiê contendo todas as ocorrências envolvendo o(a) filho(a) do casal e simplesmente diz que os pais fracassaram na educação de seu(sua) filho(a). Ele então aponta uma opção para resolver o problema, que é freqüentar o curso. "Diante de uma situação tão dura para os pais, todos aceitam a proposta do curso, que lhes é explicada em dois minutos na audiência", afirma Amand.

Portanto, os pais não são obrigados, mas sim convidados a fazer o curso. Uma semana após a audiência, profissionais da ONG já se encontram com os pais para a primeira conversa, em geral na casa da família em questão.

Perfil - Para se chegar no ponto de receber uma convocatória como essa, é preciso estar em situação extrema. Trata-se de casos em que os pais são cúmplices das infrações de seus filhos, ou de casos em que os filhos já passaram por muitos serviços de ajuda que não resolveram, ou ainda de casos em que os pais desacreditam dos serviços de ajuda e já não encaminham mais seus filhos.

"Existe também aqueles que registram violência doméstica – em que não há mais respeito entre pais e filhos. Também casos de filhos violentos e perigosos". Amand afirma que esses casos ocorrem muitas vezes em cidades menores, com poucas opções de lazer para adolescentes. O perfil em geral é de famílias com baixo poder aquisitivo. Algumas moram em caravanas ou campings, outras estão nas periferias, onde adolescentes integram gangues que cometem delitos, como, por exemplo, roubo de carros, degradação de carros ou de transporte público e agressão. A evasão escolar é freqüente entre esses adolescentes, que em geral têm idade entre 12 e 18 anos.

A condição para que os pais freqüentem o curso é que seus filhos retornem à escola. Além disso, os filhos não devem mais sair de casa sem a autorização de seus pais.

Aliança - "Para nós, é fundamental criar uma aliança com os pais desde o primeiro momento, diante do procurador do Rei ou do juiz", disse Amand. Fica claro que existe confidencialidade sobre tudo o que for conversado. Além disso, os profissionais provam que não se trata de controlar nem de indicar o que os pais devem fazer – eles sequer lêem o dossiê de ocorrências do(a) adolescente.

A primeira fase compreende um total de seis horas de curso, com reuniões individuais com os pais, em seu domicílio. "Na primeira reunião com os pais, pegamos uma folha de papel, dividimos em duas colunas e, no alto da coluna à esquerda, escrevemos 'Problemas' e, à direita, escrevemos 'Soluções'. Quem nos conta quais são os problemas são os pais. Quem nos indica quais as soluções desejadas, possíveis e plausíveis, também são eles", explica Amand, que esclarece que quem dá o curso nada mais faz do que dirigir a conversa, para avançar no sentido de apontar soluções (1). "Depois que tudo está anotado, rasgamos a folha no meio e ficamos apenas com as soluções. Os problemas não nos interessam. É nas soluções que os pais desejam que vamos, a partir daquele momento, focalizar nossas ações."

Segundo ele, o processo passa, naturalmente, pela recuperação da auto-estima dos pais. "Para uma mãe, a solução era comprar o sofá." Mas isso interferirá em seu relacionamento com o filho? "Sim, na medida em que ela passa a ter um espaço de convívio social em sua casa, coisa que a incomodava e criava nela um terrível complexo de inferioridade, inclusive com vizinhos, a quem nunca chamava para uma visita."

Outra mãe tinha o sonho de tornar-se uma restauradora de quadros antigos. "Como ela tinha pouco estudo, buscou viabilizar esse sonho com cursos técnicos aos quais ela teria acesso". Uma vez que pais e mães recuperassem sua auto-estima, recuperariam também seu status de pai e de mãe (2).

Uma das mães que freqüenta o projeto piloto, por exemplo, quer que seu filho volte a estudar. Parece simples, mas, para aqueles pais, um objetivo como esse toma uma dimensão de irrealizável depois de muitas tentativas frustradas.

Durante o curso, no entanto, a elaboração desse objetivo ganha um status simbólico importante, que lança um processo de reconquista do papel de pai / mãe. É o primeiro passo para voltar a se sentir parte da situação de seu(sua) filho(a), sobretudo porque reconhecer que é ser pai ou mãe de adolescente infrator(a) não é uma tarefa fácil.

O coordenador do curso, Michel Amand, afirma que freqüentemente os pais se sentem desamparados diante de uma situação em que perderam o controle. Além disso, há a vergonha, o isolamento e a culpa, segundo ele.

Para lidar com esses aspectos, existe a segunda etapa, a principal, com 24 horas divididas em três módulos de curso, com reuniões multiparentais, organizadas duas vezes por mês. O grupo de pais do projeto piloto é composto por doze pessoas. Os participantes se encontram com outros pais e mães e trocam experiências, numa forma também de minimizar a culpa e de perceber que não são os únicos com esse tipo de problema. Essa fase promove nos pais o sentimento de pertencimento a um grupo.

Sempre na sessão anterior, eles definem o tema de discussão da sessão seguinte. Um dos temas apontados na experiência piloto foi a reincidência no crime. Para discutir, o grupo é dividido em dois e cada qual é acompanhado por educadores. Todas as reuniões seguem a mesma estrutura. A partir de um suporte (um conto, uma encenação teatral, um filme ou uma reportagem de televisão), é feita a discussão entre os participantes.

Em questão de alguns meses os pais e mães passam a se conhecer, criam laços. Nessa fase, já não se sentem mais forçados a compartilhar suas experiências. Para um pai que freqüenta a reunião, ali torna-se uma nova família.

Há casos mais extremos, em que o pai alcoólatra era humilhado pelo filho, em uma clara inversão de papéis. "Nesse caso, o pai sonhava não ser mais insultado por seu filho. Mas para ele ser respeitado e considerado como pai, tinha que recuperar sua auto-estima". Nesse caso, o tema do alcoolismo foi tratado em uma dramatização feita pelos próprios participantes.

A cada reunião multiparental, são duas horas iniciais de atividade e discussão, meia hora de pausa – momento em que os educadores deixam os participantes a sós para que eles interajam e, finalmente, meia hora de síntese do dia. "No momento final, perguntamos: de tudo o que foi falado, o que pode te ajudar na solução do seu problema?"

Nas reuniões multiparentais, grupos mais antigos se encontram também com novos integrantes, para que troquem experiência. Muitas vezes, os adolescentes também participam e vêem pela primeira vez seus pais falarem e serem ouvidos por outros. "Trata-se de uma experiência emocional corretiva. Os filhos reencontram sua posição de filhos e os pais retomam sua credibilidade e respeito como pais", descreve Amand.

Atualmente, 34 cursos piloto são realizados na Bélgica. Após seu término, um relatório situacional é encaminhado para o juiz da juventude. A partir dos resultados, o Ministério da Ajuda à Juventude espera convencer a totalidade dos magistrados da juventude a considerar esse caminho como uma possível solução para o problema da criminalidade juvenil.

O projeto piloto teve um custo de 1 milhão de euros obtidos por meio de um acordo de cooperação. Atualmente, os dois primeiros cursos piloto estão em fase de finalização. Durante a entrevista ao Portal Pró-menino, o diretor Michel Amand recebeu um telefonema de uma instituição da associação de magistrados da juventude, solicitando um encontro para conhecer melhor a proposta do curso aos pais. Sinal de que a experiência tem tudo para ser disseminada com o objetivo de pôr fim ao problema da delinqüência juvenil.


Notas de rodapé:

(1) Teoria Narrativa (em português)

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(2)Terapia orientada à solução, Steve de Shazer; Insoo Kim Bery; Bill O'Hanlon (em inglês)


* Daniela Rocha é jornalista, coordenou projetos de comunicação para a
eliminação do trabalho infantil e foi Oficial da OIT (Organização Internacional do Trabalho


Site Pró-menino.

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