quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Artigo: Interrogatório por videoconferência: uma visão principiológica

Resumo: A Constituição Federal de 1988 enumera dentre seus princípios o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a publicidade, dentre outros. O Estado, no exercício de suas funções, deve atuar no sentido de promover e respeitar tais princípios, como meio de concretização dos direitos e garantias fundamentais. Nesse contexto, é importante avaliar a possibilidade da utilização do interrogatório por videoconferência na sistemática processual brasileira, à luz dos princípios constitucionais de um Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Interrogatório; videoconferência; princípios constitucionais.

Abstract: Among the outstanding principles of the Brazilian Constitution of 1988 are the due process of law, the contradictory, the full defense and the publicity. Therefore, the government must address its actions in order to promote and protect these principles as a means to come through the fundamental rights and warranties. In this context, it is important to assess the possibility of using the interrogation through videoconference in the Brazilian systematic procedure, according to the constitutional principles of a Democratic State of Law.

Key words: Interrogation; videoconference; constitucional principles.

1. Introdução

Consoante lição de Norberto BOBBIO, hoje, o problema fundamental em relação aos direitos do homem não é tanto de justificá-los, mas o de protegê-los (1992: p. 24).

Nesse sentido, de proteção e efetivação dos direitos, Mauro CAPPELLETTI e Bryant GARTH organizaram um estudo acerca do acesso à ordem jurídica justa, identificando três ondas renovatórias (1988: p. 31). A primeira onda referiu-se à assistência judiciária aos necessitados, isto é, a busca de mecanismos para se garantir o acesso à justiça e se efetivar a defesa dos hipossuficientes. A segunda objetivou encontrar técnicas processuais para proteção dos interesses difusos, coletivos e transindividuais. Já a terceira onda buscou dar um novo enfoque ao acesso à justiça, consistente na idéia de efetividade do processo, caracterizada por uma justiça integral, ampla e irrestrita. É nessa onda que se insere o princípio da celeridade processual (LENZA, 2007: p. 610-611, 745-746).

Dessa forma, no afã em se dar efetividade, agilidade e rapidez na prestação da tutela jurisdicional, garantindo-se, por conseguinte, a efetivação do acesso à justiça, trouxe-se à baila a discussão sobre a utilização do interrogatório por videoconferência no processo penal brasileiro.

Além dessa preocupação com os princípios da celeridade e efetividade processual, a utilização do interrogatório on-line implica, segundo seus defensores, economia de gastos públicos com transferência e escolta de detentos; redução da possibilidade de fugas; maior segurança na manutenção dos encarcerados e da própria sociedade e aplicação em maior amplitude do princípio do juiz natural.

Por outro lado, cumpre notar que a aplicação da teleaudiência no processo penal brasileiro poderia ensejar a violação de princípios constitucionais, tais como: devido processo legal, contraditório, ampla defesa, publicidade.

Nessa perspectiva, faz-se imperiosa a discussão da possibilidade em se adotar o interrogatório por videoconferência na sistemática processual brasileira, sobretudo, quando se leva em conta que a estrutura do processo penal de uma nação é, na realidade, um indicativo do exercício democrático ou não dos poderes (GOLDSCHIMDT, 2002: p. 71).

2. Contextualização do tema do interrogatório por videoconferência no atual cenário jurídico e político brasileiro

A utilização da tecnologia na realização de atos judiciais não é novidade. Já em meados de 1996 foi realizado, por um juiz em Campinas/SP, o primeiro interrogatório sem a presença física do réu na sala de audiência. Naquela oportunidade, o sistema utilizado conectava o réu aos demais sujeitos processuais por meio apenas das palavras, sem imagem (BRANDÃO, 2004: p. 01).

Todavia, essa discussão tomou espaço nas manchetes dos meios de comunicação, especialmente no ano de 2007, em virtude dos gastos na operação para o interrogatório do mega traficante Fernandinho Beira Mar, corroborada pela possibilidade de fuga do referido preso.

Ademais, do ponto de vista jurídico, foram editadas leis estaduais, como a Lei n. 11.819/2005, de São Paulo, a Lei n. 4.554/2005, do Rio de Janeiro e a Lei n. 7.177/2002, da Paraíba, que prevêem a possibilidade de, nos procedimentos judiciais destinados ao interrogatório e à audiência de presos, a utilização de aparelhos de videoconferência, com o objetivo de tornar mais célere o trâmite processual, desde que observadas as garantias constitucionais.

Nesse mesmo sentido, o Senado Federal aprovou, no dia 24.10.2007, o substitutivo da Câmara a projeto de lei do Senado (PLS n. 139/2006) que alterava o Decreto-lei n. 3.689/1941 (Código de Processo Penal- CPP), para prever a videoconferência como regra no interrogatório judicial, modificando o disposto no seu art. 185 do CPP. O projeto foi encaminhado ao Presidente da República que o vetou. Apenas a título de informação, a Lei n. 11.690/2008, aprovada em 09.06.2008, alterou o art. 217 do CPP, admitindo a possibilidade de inquirição de testemunha por videoconferência, se o juiz verificar que a presença do réu lhe causará humilhação, temor ou sério constrangimento, prejudicando a verdade do depoimento e, somente na impossibilidade dessa forma, determinar-se-á a retirada do réu da sala de audiências.

Além disso, recentemente, a discussão também ganhou destaque no Supremo Tribunal Federal (STF). No dia 14.08.2007, a Segunda Turma do STF, no HC n. 88.914-SP, relator ministro César Peluso, ausente apenas o ministro Joaquim Barbosa, decidiu, por unanimidade, pela inadmissibilidade da videoconferência no interrogatório de um acusado condenado em primeira instância a 14 (catorze) anos por extorsão mediante seqüestro e pela renovação do processo desde o interrogatório. Nesse sentido:

AÇÃO PENAL. Ato processual. Interrogatório. Realização mediante videoconferência. Inadmissibilidade. Forma singular não prevista no ordenamento jurídico. Ofensa a cláusulas do justo processo da lei (due process of law). Limitação ao exercício da ampla defesa, compreendidas a autodefesa e a defesa técnica. Insulto às regras ordinárias do local de realização dos atos processuais penais e às garantias constitucionais da igualdade e da publicidade. Falta, ademais, de citação do réu preso, apenas instado a comparecer à sala da cadeia pública, no dia do interrogatório. Forma do ato determinada sem motivação alguma. Nulidade processual caracterizada. HC concedido para renovação do processo desde o interrogatório, inclusive. Inteligência dos arts. 5º, LIV, LV, LVII, XXXVII e LIII, da CF, e 792, caput e § 2º, 403, 2ª parte, 185, caput e § 2º, 192, § único, 193, 188, todos do CPP. Enquanto modalidade de ato processual não prevista no ordenamento jurídico vigente, é absolutamente nulo o interrogatório penal realizado mediante videoconferência, sobretudo quando tal forma é determinada sem motivação alguma, nem citação do réu.

Com efeito, uma vez contextualizada a discussão acerca da utilização do interrogatório on-line tanto do ponto de vista jurídico (aprovação do projeto de lei n. 139/2006 pelo Congresso Nacional e à vista da legislação de alguns Estados que já disciplinam a matéria), como do ponto de vista econômico (em virtude das recentes informações sobre gastos com escolta e transporte de presos), assim como do ponto de vista prático (decisão do STF anulando ação penal desde o interrogatório que foi realizado por videoconferência), passa-se a analisar efetivamente a constitucionalidade da adoção da teleaudiência no processo penal brasileiro.

3. Propaladas vantagens da adoção do interrogatório on-line

Prima facie, impende destacar que as vantagens da utilização do interrogatório por videoconferência, segundo seus defensores, baseiam-se em cinco premissas básicas: celeridade processual; segurança pública; economia de gastos públicos; não aplicação do princípio da identidade física do juiz no processo penal; incidência em maior amplitude do princípio do juiz natural.

De acordo com a sistemática processual brasileira, o réu preso deve ser citado pessoalmente para ser interrogado acerca dos fatos que lhe são imputados (art. 360 do CPP). Assim, uma vez citado, por ocasião do seu interrogatório, não sendo o caso de oitiva no estabelecimento prisional (art. 185, § 1º do CPP), deve o réu preso ser conduzido até a sala de audiências a fim de que possa ser interrogado. Para tanto, é necessária a estruturação e a mobilização de todo um aparato administrativo, capaz de planejar o itinerário das escoltas, o modo de sua locomoção, os agentes que farão parte dela etc., garantindo, dessa forma, que o deslocamento dos presos seja feito com segurança, o que demanda tempo e pode implicar em lentidão no trâmite dos processos judiciais.

Nessa senda, pela videoconferência, o interrogatório do réu preso seria agilizado, já que se dispensaria a mobilização do aparato do Estado na escolta do preso até o Fórum, em consonância com o disposto na Carta Magna, art. 5º, LXXVIII, no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14, § 3º, Decreto n. 592/1992) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8º, Decreto n. 678/1992).

Nessa perspectiva, a utilização do interrogatório por videoconferência no processo penal aceleraria a prestação jurisdicional através de um processo sem dilações desnecessárias, reforçando a premissa de que o processo não pode ser tido como um fim em si mesmo, mas, ao contrário, deve se constituir em instrumento eficaz de realização do direito material (WEDY, 2006: p. 94-96).

Além da celeridade processual, o interrogatório por videoconferência reduziria os riscos de fugas e resgates dos réus decorrentes do deslocamento da escolta. Nesse passo, o interrogatório on-line teria uma preocupação com a garantia da segurança pública, na medida em que não são raras as tentativas de fuga decorrentes do transporte de preso, tal como ocorreu recentemente.[2]

O transporte de presos para interrogatórios além de aumentar o risco de fugas, não raro, tumultua o trânsito e exige organização de estrutura de segurança também nas dependências dos Fóruns, por onde os presos transitam, colocando a si mesmos e outras pessoas em risco, à vista da possibilidade de os policiais utilizarem suas armas para evitar resgates, fugas e de eventuais agressões de terceiros.

Assim, na perspectiva de diminuir esses riscos, o interrogatório por videoconferência colocar-se-ia como uma alternativa, propiciando maior segurança pública. Ademais, os recursos humanos e materiais que são utilizados no transporte e escolta de presos poderiam ser destinados para a principal finalidade da segurança pública, qual seja prevenção e repressão de crimes, conforme dispõe o art. 144 da CF/1988 (COELHO, 2007: p. 01-02).

Além dos argumentos acima mencionados, a utilização do interrogatório on-line, paraseus adeptos,teria o escopo de diminuir os gastos com transporte e escolta de presos. É elucidativo o caso do traficante Fernandinho Beira Mar que, conforme informações prestadas pela Federação Nacional dos Policiais Federais (FENAPEF), desde 2001, quando foi preso, já fez cerca de catorze viagens que geraram gastos de aproximadamente R$ 220.000,00 (duzentos e vinte mil reais) a fim de participar de audiências de interrogatório e de inquirição de testemunhas. Não se pode desprender, todavia, que a entidade divulgadora destes dados tem nítido interesse em abolir os deslocamentos, uma vez que os policiais federais são diretamente envolvidos nestas operações, sujeitando-se aos riscos já descritos e, mais, tais deslocamentos consumem recursos que entendem poderiam ser destinados a outros fins, dentro da própria corporação da Polícia Federal.

A revista semanal Veja, a seu turno, em 05.12.2007, publicou reportagem, informando que apenas em São Paulo, no ano de 2007, as operações envolvendo escolta com presos para interrogatórios judiciais utilizaram 38.000 (trinta e oito mil) viaturas policiais e envolveram 96.000 (noventa e seis mil) policiais.

Conforme dados trazidos por Leandro NALINI, em artigo publicado na Revista Consultor Jurídico de 16.08.2005, colhidos pelo desembargador Francisco Vicente Rossi do Tribunal de Justiça de São Paulo, no interregno de 1° a 15 de junho de 2003, foram realizadas 27.186 (vinte e sete mil, cento e oitenta e seis) escoltas, 73.744 (setenta e três mil, setecentos e quarenta e quatro) policiais militares e 23.240 (vinte e três mil, duzentos e quarenta) viaturas policiais foram mobilizados, gerando um gasto de R$ 4.572.961,94 (quatro milhões, quinhentos e setenta e dois mil, novecentos e sessenta e um reais e noventa e quatro centavos).

Corroborando os argumentos favoráveis ao interrogatório virtual, seus defensores ressaltam, ainda, que não vige no processo penal brasileiro o princípio da identidade física do juiz, ao contrário do que ocorre no processo civil, em que “o juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor” (art. 132, caput, do Código de Processo Civil). Por conseguinte, conclui-se que o juiz interrogante não é, necessariamente, o julgador, não havendo, pois, que se pugnar pelo contato pessoal entre acusado e magistrado, uma vez que não se configura imprescindível esse contato para o julgamento. Nesse sentido, verifica-se o julgado:

Juiz Identidade física. O CPP brasileiro não contempla o princípio da identidade física do Juiz. Precedentes do STF. O conceito de miserabilidade não se restringe ao miserável, mas abrange pessoa de condição modesta ou até da classe média que se encontrem em situação de não poderem prover as despesas do processo, sem se privarem de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família. Precedentes do STF. (STF. HC 76.563-6/SP. Rel.: Min. Moreira Alves. Julgado em 12.05.1998. DJ 19.06.1998).

Além do mais, o teleinterrogatório asseguraria ao réu, com muito maior amplitude, o princípio do juiz natural (art. 5º, LIII, da CF/1988). Ora, adotando-se o interrogatório on-line, não seria mais necessária a expedição de cartas precatórias, rogatórias ou de ordem para interrogatório de denunciados, de modo que caberia ao próprio juiz da causa inquirir diretamente o réu, onde quer que ele esteja. Assim, todos os atos processuais seriam, de fato, realizados pelo juiz natural da causa (ARAS, 2003: p. 50-58).

Por derradeiro, convém destacar que, considerando o argumento de que o uso do sistema de videoconferência para interrogatório do réu não ofenderia garantias constitucionais, a ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal, em julho de 2007, indeferiu pedido de liminar nos Habeas Corpus n. 91.859/SP e n. 91.758/SP. A ministra entendeu relevante o fundamento da decisão do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que não existiria ofensa às garantias constitucionais do réu. Da mesma forma, em 27.03.2007, no Habeas Corpus n. 90.900/SP, o ministro Gilmar Mendes decidiu de modo similar. No mesmo sentido, verificam-se os julgamentos no Superior Tribunal de Justiça: HC n. 73.801/SP, DJ 11.06.2007; HC n. 76.046/SP, DJ 28.05.2007; HC n. 34020/SP, DJ 03.10.2005; RHC n. 15558/SP, DJ 11.10.2004.

4. Videoconferência à luz dos princípios constitucionais

Uma vez superado o exame dos argumentos favoráveis à utilização do interrogatório por videoconferência, cumpre agora analisar a constitucionalidade dessa medida à luz dos princípios constitucionais.

In limine, é importante recordar que a estrutura do processo penal de uma nação é, na realidade, um indicativo do exercício da democracia (GOLDSCHIMIDT, 2002: p. 71), por isso, além das vantagens que o interrogatório on-line poderia propiciar, deve-se analisar, sobretudo, se direitos e garantias constitucionais serão limitados.

Do ponto de vista do direito internacional, há argumentos favoráveis e desfavoráveis ao teleinterrogatório (GOMES, 1996: p. 06).

Por um lado, com o intuito de se combater a corrupção e a criminalidade transnacional, foram aprovadas a Convenção de Palermo e a Convenção de Mérida, pela Organização das Nações Unidas (ONU), as quais prevêem expressamente a utilização da videoconferência para a tomada de depoimentos de réus colaboradores, testemunhas, vítimas e peritos (art. 18, §18, art. 24, §2º, b e arts. 32, §2º, e 46, §18, respectivamente). É oportuno lembrar que o Decreto n. 5.015/2004 introduziu no Brasil a Convenção das Nações Unidas contra o crime organizado transnacional (Convenção de Palermo), de modo que as normas da convenção passaram a vigorar em todo território nacional com força de lei ordinária.

De outro lado, o Brasil também ratificou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direito Humanos, que garantem ao preso o direito de ser conduzido à presença do juiz (art. 9º, número 3, Decreto n. 591/1992 e art. 7º, número 5, Decreto n. 678/1992, nessa ordem). Com efeito, no contexto atual, em que se pode observar a abertura cada vez maior do Estado constitucional a ordens jurídicas supranacionais de tutela dos direitos fundamentais do homem (MENDES, 2008: p. 698), Cançado TRINDADE enfatiza a tendência constitucional contemporânea de dispensar tratamento especial aos tratados de direitos humanos, situando o ser humano no centro do sistema (2003: p. 515). Assim, uma vez incorporados tratados internacionais que tratem de direitos e garantias do homem, não seria possível limitaram-se, nem mesmo por lei ordinária, tais direitos e garantias, sob pena de ofensa ao princípio de proibição do retrocesso (garantia do sistema universal dos direitos humanos) e do art. 5º, §§ 2º e 4º, da CF/1988. Destarte, não seria possível o teleinterrogatório no processo penal brasileiro, já que se trata de um direito inerente ao homem ser levado à presença do juiz, não podendo ser limitado, nem mesmo por lei ordinária.

Dessa forma, sob o prisma do Direito Internacional, ao mesmo tempo em que há a Convenção de Palermo, ratificada pelo Brasil, que admite adoção do interrogatório on-line, ao revés, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ambos introduzidos no ordenamento interno, não admitem o teleinterrogatório.

Destarte, não se pode resolver essa celeuma pela adoção de convenções ou regras do direito internacional. Sendo assim, cabe então analisar a possibilidade de adoção do interrogatório por videoconferência sob um enfoque constitucional.

Os defensores do teleinterrogatório argumentam que sua adoção implicaria em uma maior celeridade na prestação jurisdicional.

Entretanto, a modernização dos atos processuais não pode ser utilizada para subtrair direitos constitucionais, já que o processo penal é um instrumento que legitima o poder, e não uma forma de se retirar garantias mínimas. Nesse sentido, Natalie Ribeiro PLETSCH argumenta que, no interrogatório por videoconferência, a tecnologia acaba sendo utilizada para minimizar garantias. Para a referida autora, não basta o réu ser julgado por juiz natural, é necessário que ele conheça seu julgador e tenha o direito de lhe falar pessoalmente (2007: p. 64).

Para Luigi FERRAJOLI, o interrogatório é o melhor paradigma de distinção entre o sistema inquisitivo e o acusatório, pois naquele o interrogatório representa o começo da guerra forense, o primeiro ataque do fiscal contra o réu, ao passo que, no sistema acusatório, consubstanciado no princípio da presunção de inocência, o interrogatório é o principal meio de defesa, permitindo ao acusado refutar as acusações a ele imputadas (2002: p. 489-490). Assim, o interrogatório tem a função de dar materialmente vida ao juízo contraditório. Na verdade, o direito processual penal, no sistema acusatório (garantista) funciona como um freio ao excesso punitivo do Estado, à coação direta própria da administração dos aparatos penais quando inexistentes as garantias. Por isso, a exaltação da celeridade processual como indicativo da eficiência no processo penal significa, na verdade, a potencialização de uma prática inquisitiva, com disfarces acusatórios, deixando de lado o modelo garantista (PLETSCH, 2007: p. 50-52).

Ademais, o princípio constitucional da ampla defesa (autodefesa e defesa técnica) não se resume apenas ao direito à voz, o qual se verificaria na oralidade do interrogatório, mas, também, processualmente, no direito à presença (FERNANDES, 2000: p. 268).

A autodefesa, também chamada de defesa material ou genérica, exerce-se por meio de atuação pessoal do acusado, especialmente no ato do interrogatório, quando este oferece sua versão sobre os fatos ou invoca o direito ao silêncio, ou ainda, quando, por si próprio, solicita a realização de provas, traz meios de convicção, requer a sua participação em diligências e acompanha os atos de instrução. Enfim, a autodefesa abrange o direito de audiência (presença) e de participação (LOPES JUNIOR, 2005: p. 237). A defesa técnica, por sua vez, refere-se à imprescindibilidade da defesa feita por defensor habilitado, constituído pelo acusado ou nomeado pelo órgão jurisdicional (CF/1988, art. 5°, LXIII; art. 134 e CPP art. 263).

Segundo Rogério TUCCI e Marta SAAD, o princípio da ampla defesa engloba o direito à informação (parte acusada deve ser informada do ajuizamento da ação penal, bem como de seu conteúdo); bilateralidade da audiência (o juiz deve ouvir ambas as partes) e direito à prova legitimamente produzida, isto é, prova de origem lícita (2002: p. 176; 2004: p. 219-220). Assim, por exemplo, haveria violação deste princípio a impossibilidade de o réu ou de o defensor, que estivesse junto com o preso, consultarem os autos durante o interrogatório por videoconferência (direito à informação).

O princípio do contraditório, a seu turno, conforme lição de Cândido Rangel DINAMARCO, é constituído por dois elementos: informação e reação (2005: p. 237). Em relação ao primeiro elemento, atribui-se a necessidade de que se dê ciência a cada litigante dos atos praticados pelo juiz e pelo adversário (citação, intimação e notificação). O segundo aspecto caracteriza-se pela efetiva reação da parte ao fato processual e conseqüente influência no convencimento do juiz.

Ora, o interrogatório é o momento processual de maior relevância na autodefesa, já que nele o sujeito passivo tem a oportunidade de expressar os motivos, justificativas ou negativas de autoria ou da materialidade do fato (reação). Como se vê, o interrogatório não se restringe mais a um meio probatório, mas é, sobretudo, um meio de defesa (FERNANDES, 2000: p. 268), permitindo ao acusado apresentar ao juiz sua versão acerca dos fatos (autodefesa), ao mesmo tempo em que é a oportunidade de o juiz conhecer pessoalmente o acusado, de sorte que a realização virtual deste ato processual poderia ensejar interferências administrativas negativas.

Além disso, os princípios do contraditório e da ampla defesa não podem ser exercidos de forma plena no teleinterrogatório, já que o réu preso poderia sentir-se constrangido e inseguro em prestar declarações que incriminem, por exemplo, outros detentos ou, ainda, denunciar eventuais abusos pelos agentes carcerários (PITOMBO, 2000: p. 01-02). Não faz sentido que a comunicação entre uma eventual vítima de prisão arbitrária e o juiz se dê justamente no local em que a ilegalidade está sendo perpetrada, sem que sejam asseguradas as garantias indispensáveis para que o preso possa levar ao conhecimento do magistrado fatos ofensivos à lei e requerer sua atuação (Resolução n. 05/2002, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária).

Nessa perspectiva, o ministro Cezar Peluso (STF, HC n. 88.914/SP, Segunda Turma, julgado em 14.08.2007), relatou que “a adoção da videoconferência leva à perda de substância do próprio fundamento do processo penal” e torna a atividade judiciária “mecânica e insensível”. Segundo ele, o interrogatório é o ato processual em que o réu exerce seu direito de autodefesa. O ministro esclareceu ainda que países como Itália, França e Espanha há previsão legal do teleinterrogatório, o qual somente é utilizado em casos excepcionais e por meio de decisão fundamentada. Ao revés, no Brasil, ainda não há lei que preveja o interrogatório por videoconferência, e ainda que houvesse “a decisão de fazê-lo não poderia deixar de ser suficientemente motivada, com demonstração plena da sua excepcional necessidade no caso concreto”.

No voto, o ministro César Peluso acrescentou, também, que os argumentos favoráveis à teleaudiência, referentes à maior celeridade, redução de custos e segurança aos procedimentos judiciais, não seriam suficientes a justificar sua adoção, pois “quando a política criminal é promovida à custa de redução das garantias individuais, se condena ao fracasso mais retumbante”. O presidente da Turma, Ministro Celso de Mello, por sua vez, afirmou que a decisão “representa um marco importante na reafirmação de direitos básicos que assistem a qualquer acusado em juízo penal”. Para ele, o direito de presença real do réu no interrogatório e em outros atos da instrução processual tem de ser preservado pelo Judiciário. O ministro Eros Grau também acompanhou o voto de Cezar Peluso. Já o ministro Gilmar Mendes não chegou a acolher os argumentos de violação constitucional apresentados pelo relator, cingindo-se a dizer que o teleinterrogatório seria inadmissível em razão da ausência de lei autorizante.

Nesse mesmo sentido, a 6ª Turma, do Superior Tribunal de Justiça, em 23.05.2008, à unanimidade, seguindo o voto da desembargadora convocada Jane Silva, concedeu a ordem do HC n. 98422/SP, e considerou ilícito o interrogatório e audiência por videoconferência realizados no caso de um sentenciado por tráfico de drogas. Segundo a decisão, é por meio do interrogatório com a presença física do juiz e do réu, que poderão ser extraídas as mais minuciosas impressões, podendo ainda ser observado se o réu encontra-se em perfeitas condições físicas e mentais, além de poder relatar maus tratos.

Cumpre notar ainda que o interrogatório é a única oportunidade no processo penal em que o acusado se dirige diretamente ao juiz da causa, de modo que não pode ser essa garantia retirada do réu à vista de um argumento utilitarista. Nesse sentido:

O discurso sobre a necessidade da celeridade processual e da segurança pública induz a retirada por completo da função básica do processo penal como garantia do cidadão voltado às mazelas de uma situação processual, para impor um eficienticismo ilusório (utilitarismo prático) e um paradigma da intolerância assaz na procura da permanência de um inquisitorialismo sistêmico. (...) O progresso técnico deve servir para o aparelhamento e conforto da sociedade. Sua prática serviu e serve para que a humanidade consiga se comunicar, de forma imediata, por todo o mundo, realizando uma verdadeira aproximação e crescimento mundial. Contudo, a utilização deste progresso tecnológico não pode retroagir às situações medievais, onde o indivíduo não possuía qualquer valor frente aos interesses estatais. Deve se utilizar este aprimoramento técnico para amparar toda a sociedade com saúde, educação, urbanismo, cultura, etc., e não tirar do indivíduo o que nossa Constituição estabeleceu logo no primeiro dispositivo: a dignidade da pessoa humana (SAMPAIO, 2005: p. 08).

Destarte, o processo, além de um instrumento para a aplicação da pena, é um meio de obstar abusos processuais e vilipêndios aos direitos fundamentais, não apenas preocupado em buscar paz social, mas sim equilibrar o jogo dialético existente entre a soberania do Estado e os Direitos Humanos (WEDY, 2006: p. 64-65).

Não se pode olvidar também que a adoção do interrogatório on-line poderia ofender o princípio da publicidade, pois apenas será público o que for estritamente focalizado pelas câmeras e o que for audível aos microfones, permitindo que outros elementos relevantes deste único contato entre o acusado e o juiz passem desapercebidos (CASAGRANDE, 2003: 754-755).

O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) do Ministério da Justiça, em setembro de 2002, aprovou a Resolução n. 05, que fundada nos pareceres dos conselheiros Ana Sofia Schmidt de Oliveira e Carlos Weis, manifestou-se oficialmente contra a realização do teleinterrogatório de presos considerados perigosos no Brasil. O referido conselho juntamente com a Associação Juízes para a Democracia, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a Associação dos Advogados de São Paulo, a Procuradoria de Assistência Judiciária Criminal, o Sindiproesp, a Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo e outras entidades, reuniram-se no dia 24 de setembro de 2002 e, à unanimidade, repudiaram a adoção do interrogatório por videoconferência.

Segundo a resolução do CNPCP a complexidade do tema demandaria uma abordagem por dois ângulos: a viabilidade jurídica ou não da medida no sistema normativo vigente e as implicações de política criminal que a envolvem.

O primeiro aspecto consistiria na inexistência de previsão legal. Além do mais, conforme a resolução aprovada, o sentido do devido processo legal ganha vida na forma como são executados os atos do processo, de modo que o respeito às garantias processuais e aos princípios informadores do contraditório e da ampla defesa é o que legitima o exercício da jurisdição. A observância do sistema de garantias não é um atributo do processo penal, mas sua essência. A aplicação da pena criminal é antecedida por uma série de atos ordenados e realizados conforme a lei e os princípios informadores do devido processo legal.

Ademais, segundo o CNPCP, a adoção do interrogatório on-line implicaria na violação do sistema normativo internacional de direitos humanos, já que a adesão ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e à Convenção Americana sobre Direito Humanos garantiu ao réu preso o direito de ser conduzido à presença do juiz em prazo razoável, não podendo tal direito ser limitado, nem mesmo por lei ordinária, uma vez que se trata de direito da pessoa humana, o qual, pela sistemática do direito internacional, não pode ser limitado, sob pena de ofensa ao sistema universal dos direitos humanos e ao art. 5º, §§ 2º e 3º, da CF/1988.

Ainda nessa perspectiva, de acordo com a resolução mencionada, Fabio Konder Comparato, ao comentar a lei de habeas corpus inglesa, matriz das modernas garantias, aduziu que seu dispositivo nuclear é “a ordem para que a autoridade que detém o paciente o apresente incontinenti em juízo”. Dessa forma, o paciente deveria ser retirado do seu cárcere e levado à autoridade competente juntamente com as explicações acerca das verdadeiras causas da sua prisão. Assim, levando em conta que a redação original do habeas corpus inspirou também outros remédios processuais semelhantes, requer-se para o interrogatório a mesma regra: condução física do preso ao juiz.

Também, há razões que conduzem a outra linha de argumentação, relacionadas às questões de política criminal. Ora, quando o medo e a insegurança tornam-se temas centrais na pauta política e é declarada “guerra contra o crime”, o processo penal, de instrumento garantista que é na sua essência, passa a ser mais uma arma contra o crime. Nessa perspectiva, busca-se reduzir a criminalidade, facilitar as condenações, para se chegar mais rápido ao termo final do processo e lançar às prisões o maior número de criminosos. Assim, como não é possível abrir mão de todas formalidades, utilizam-se meios de cumpri-las, ainda que de forma só aparente.

Não se podem olvidar, ainda segundo a resolução do CNPCP, os argumentos não explícitos favoráveis ao interrogatório on-line, mas muitas vezes presentes. Nesse sentido, costuma-se questionar: para que trazer o réu a juízo se ele vem para contar sempre a mesma história; os presos preferem permanecer nos presídios porque o transporte é sempre incômodo e dia de audiência, em regra, implica horas sem alimentação; é freqüente a retirada do réu da sala de audiências etc. Porém, conforme o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária não se pode confundir formalismo sem significado com significados revestidos de forma.

Por derradeiro, o CNPCP recomenda uma política de aproximação entre o Judiciário e o sistema prisional, através, por exemplo, da construção de pequenas unidades judiciais anexas ou próximas aos locais de detenção ou prisão para oitiva, em caráter excepcional, dos presos perigosos, compatibilizando o direito fundamental à preservação da segurança pública com as garantias do devido processo legal e as normas de Direito Internacional.

Ademais, além da ofensa aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, por conseguinte, do devido processo legal e da publicidade, o fato de não se aplicar o princípio da identidade física do juiz no processo penal não significa que seja possível o interrogatório por videoconferência. Segundo lição de Fernando da Costa TOURINHO FILHO (1998: p. 266):

É no interrogatório que o Juiz mantém contato com a pessoa contra quem se pede a aplicação da norma sancionadora. E tal contato é necessário porque propicia ao julgador o conhecimento da personalidade do acusado e lhe permite, também, ouvindo-o, cientificar-se dos motivos e circunstâncias do crime, elementos valiosos para a dosagem da pena.

O interrogatório é a oportunidade para que o juiz, através de um contato direto com o réu, forme juízo a respeito da personalidade, sinceridade, malícia, negligência, frieza, perversidade, nobreza, isto é, o meio para analisar as razões e demais circunstâncias judiciais. Segundo René Ariel DOTTI, a tecnologia não pode substituir o cérebro pelo computador, sendo preciso usar a reflexão como contraponto da massificação (1999: p. 22-25).

Além do mais, não obstante não viger no processo penal o princípio da identidade física do juiz, não sendo necessariamente o magistrado que inquire o réu o mesmo que sentencia, a lei facultou ao órgão jurisdicional a possibilidade de reinquirir o réu a qualquer tempo (artigos 196 e 502, parágrafo único, 616, todos do CPP). Assim, em que pese não viger o referido princípio no processo penal, o contato pessoal do réu com o juiz permite ao magistrado conhecer o acusado não apenas através da leitura dos autos, mas de uma forma concreta, a qualquer tempo (MOREIRA, 2007: p. 01-03).

Quanto à alegação de que o teleinterrogatório garantiria, em tese, aplicação em maior amplitude do princípio do juiz natural, já que o juiz interrogante seria o mesmo que o julgador, dispensando-se a expedição de cartas precatórios, rogatórias e de ordem, cumpre dizer que o juiz no processo age, principalmente, como garante do Estado Democrático de Direito devendo fiscalizar a legalidade de todos os atos processuais e o respeito aos direitos fundamentais. Por isso, faz-se necessária a apresentação física do réu em juízo, pois só assim poder-se-á verificar a legalidade da detenção e o modo como vem sendo exercida (Resolução n. 05/2002, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária).

Em relação ao argumento de que a videoconferência ensejaria redução de gastos públicos com escolta e transporte de presos, insta destacar que os princípios constitucionais de relevância processual têm natureza de normas de garantia não apenas das partes (idéia individualista das garantias), mas do próprio processo e do correto exercício da função jurisdicional (GRINOVER, FERNANDES, MAGALHÃES FILHO, 1997: p. 22-23). Ademais, as garantias processuais não podem ser quantificadas ou resumidas em cifras econômicas. Por fim, é oportuno dizer que também serão dispendiosos os gastos com a aquisição e manutenção de todo o aparato tecnológico e humano para viabilizar o interrogatório on-line.

Com relação à assertiva de que o interrogatório por videoconferência conduziria a uma maior segurança para a sociedade, convêm dizer que o Estado não pode limitar as garantias constitucionais em virtude de sua ineficiência em garantir a segurança pública (VANNI, MACHADO, 1996: p. 05).

5. Conclusão

A discussão quanto à utilização da videoconferência para realização de audiências criminais, sobretudo do interrogatório do réu, é tema que tem ganhado notoriedade no presente, devido, especificamente, aos constantes deslocamentos do preso Fernandinho Beira-Mar para ser ouvido noutros processos ainda em curso.

Como de práxis, o legislador brasileiro age no afogadilho, tomando situação peculiar como regra geral a ser adotada a todos. No caso específico do réu em referência, falta, a toda evidência, um melhor entendimento entre os diversos juízos onde o acusado responde a processos, para que haja instrução simultânea das ações, de modo a propiciar número mais reduzido de deslocamentos. Haveria, assim, forma de contenção de gastos nestes deslocamentos.

De toda feita, não se pode, a pretexto da necessidade de redução de custos, justificar a utilização da videoconferência. Está-se diante de direitos fundamentais, com os quais o Estado não pode jamais transigir. Este é um do ônus do monopólio do ius puniendi e da própria segurança pública (art. 144 da CF/1988). Afinal de contas, todo Estado Democrático de Direito tem seu preço.

Ainda nesta seara, cumpre dizer que os princípios do devido processo legal, contraditório, ampla defesa, publicidade e os princípios da duração razoável do processo, segurança pública, efetividade, juiz natural não podem ser examinadas como garantias e direitos antagônicos, ao contrário, devem interagir dentro do processo, sob pena de romper o equilíbrio do sistema, hipertrofiando uma peça em detrimento das restantes (CARVALHO, 2007: p. 01-11).

Dessa forma, à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade deve-se buscar a concordância prática, isto é, a harmonização do aparente conflito de direitos e garantias individuais, de modo que na ponderação de valores, garantam-se os direitos fundamentais inerentes à dignidade humana, já que estes têm caráter principiológico (BARROS, 1996: p. 153-177).

O argumento da evolução tecnológica, a qual propiciaria a facilitação dos mecanismos operacionais do próprio Estado, não pode, portanto, extrapolar o respeito aos direitos fundamentais. Não se atropelam garantias pela via do computador ou de outros instrumentos de informática, tecnológicos e, daqui a pouco, cibernéticos. O direito penal, sobretudo, lida com pessoas, e nisso insere-se sentimentos, motivações, preceitos morais, culturais, éticos e toda uma gama de sensações que a frieza dos avanços tecnológicos certamente não consegue captar.

Embora não estando expresso o princípio da identidade física do juiz no processo penal, não se pode negar que o contato visual e presencial do acusado com o juiz, e vice-versa, é essencial para o devido processo penal. A propósito, e a par desta justificação, o art. 59 do Código Penal, ao tratar das circunstâncias judiciais, objeto de análise na fixação da pena-base, determina que o juiz considere os antecedentes (e é bom que se diga que, neste momento, devem ser refletidos também aqueles fatos que macularam a formação do acusado, e não só suas ações criminosas), a personalidade, a conduta social etc., cujos itens a serem abordados, por mais que mereçam críticas, ainda assim são levados em conta no momento da aplicação da pena. Como, todavia, averiguar estas circunstâncias sem sequer ter estado presencialmente com o acusado?

Mais que palavras, os gestos, a conduta, a postura, o comportamento, as expressões apresentadas, tudo isso fala ao juiz. E, só tendo a oportunidade deste contato direto é que se poderia – ainda assim sob críticas, ante a ausência de conhecimento especializado do julgador – ponderar sobre as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP.

A Constituição Federal, ao exigir que todas as decisões sejam fundamentadas (art. 93, IX), quer que tal fundamentação se faça em parâmetros válidos e não a partir de ilações subjetivas e vagas que o distanciamento do réu com o juiz pode propiciar.

Por outro lado, a supressão da presença física do acusado perante o juiz é apenas mais um passo para romper com o devido processo penal, numa tentativa clara de suplantar as garantias individuais firmadas no texto constitucional. Para redução de custos e riscos – ao preso e a terceiros – basta implementar a realização dos interrogatórios no próprio estabelecimento prisional, com a adequação de espaço físico e a segurança necessária, conforme dicção do art. 185, § 1° do CPP, garantindo-se, assim, o respeito aos direitos e garantias fundamentais.

Admitir a videoconferência é abrir oportunidades para adoção de outros instrumentos e mecanismos modernizantes. Daqui a pouco, toleraremos também a supressão da própria instrução probatória, desde que o réu confesse ou dele se extraia confissão num engenho tecnológico de detecção de mentiras, como se o próprio instrumento não fosse a verdadeira farsa. Admitiremos, ainda, o projeto que consiga prever o futuro[3], fato que já se presencia com a expansão da teoria do Direito Penal do inimigo[4] e, diante disso toleraremos – como, aliás, já fazemos – a pena aplicada sem processo, senão o que dizer das invasões pelos órgãos de segurança aos morros, com permissão para matar? Substituiremos a pena de privação de liberdade por chips intracutâneos, num processo de vigilância sistemática por GPS, podendo assim ampliar ainda mais o sistema de controle e submissão de pessoas a modelos dominantes.

E por aí vão tantos outros exemplos de propostas que viriam acompanhar a necessidade de “evolução do sistema penal”, consoante as novas tecnologias do mercado, satisfazendo, com toda certeza, os interesses comerciais de grupos determinados, que esmeram nos corredores do poder a fazer seus lobby.

Nesse passo, não se pode atribuir qualquer vantagem à adoção do interrogatório on-line quando com isso houver, por conseguinte, supressão de garantias fundamentais. As modificações do Código de Processo Penal devem, necessariamente, estar amparadas nos ditames garantistas previstos na Constituição Federal e nos instrumentos de direito internacional, dos quais o Brasil sempre foi signatário.

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[2] Conforme noticiado na Folha Online, no dia 21.11.2007, cinco presos que haviam sido interrogados no Fórum de Guarujá/SP, no transporte para o Centro de Detenção Provisória de São Vicente, foram libertados quando cerca de dez homens abordaram a viatura em que estavam, causando a morte de um dos policiais e ferindo gravemente outro.

[3] Nesse sentido, o filme Minority Report, 2002, de Steven Spielberg, trata justamente da possibilidade de se prever antecipadamente a ocorrência de crimes a partir de visões de paranormais (precogs), os quais fornecem informações a policiais que tentam descobrir onde ocorrerá o delito e punir o agente antes mesmo que o fato se realize.

Disponível em http://pt.wikipedia.org. Acesso em 04.12.2007.

[4] Günther Jakobs, inspirado na teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, apresentou à Ciência Penal a figura do inimigo, indivíduo que por não oferecer uma segurança cognitiva suficiente, não deve ser submetido a um Direito Penal garantista, mas a um procedimento de guerra. Assim, o Direito Penal poderia ser visualizado sob duas óticas: direito penal do cidadão e direito penal do inimigo. O primeiro seria o direito aplicado ao criminoso comum, àquele que com sua conduta promoveu uma desautorização da norma e o segundo seria o direito a ser utilizado contra as pessoas capazes de abalar a estrutura da vida em sociedade a exemplo dos terroristas. Para Jakobs, o indivíduo tido como inimigo perde seu status de cidadão, legitimando o Estado a suprimir, em nome do bem comum, direitos e garantias penais e processuais penais historicamente conquistados. (2005: p. 19-49).

Referida concepção pôde ser verificada no caso do brasileiro Jean Charles de Menezes que, confundido com um homem bomba, foi morto num metrô de Londres com oito tiros a queima-roupa por forças especiais britânicas.

Disponível em http://pt.wikipedia.org. Acesso em 04.12.2007.


Tarsila Costa Guimarães, Advogada/GO, Graduada em Direito pela Universidade Federal de Goiás-UFG; Pós-graduada em Direito Processual Penal pela Universidade Federal de Goiás-UFG.

GUIMARÃES, Tarsila Costa. Interrogatório por videoconferência: uma visão principiológica. Disponível em: www.ibccrim.org.br. Acesso em: 04 nov. 2008.

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