terça-feira, 1 de setembro de 2009

Artigo: A caverna e as sombras

“Estão lá dentro desde a infância,
algemados de pernas e pescoços,
de tal maneira que só lhes é
dado permanecer no mesmo lugar
e olhar em frente; são incapazes
de voltar a cabeça...”

Platão

O processo de afirmação e de proteção dos direitos humanos não seguiu uma trajetória linear. De fato, as conquistas foram pautadas por avanços e retrocessos, especialmente ao longo do século XX, em que conflitos armados e manifestações de intolerância étnica, racial e política se proliferaram. Mas, a experiência histórica revela que são justamente nos momentos de maciça e reiterada violação de direitos humanos que a consciência coletiva é impulsionada em direção ao resgate da importância do contínuo respeito dos valores essenciais da dignidade humana(1). Ou seja, se de um lado, os lamentáveis acontecimentos do último século expuseram o ideal da banalização da vida(2), por outro, fortaleceram a certeza de que a proteção dos direitos humanos não poderia ficar restrita à esfera doméstica dos Estados. Nesse sentido, a criação das Nações Unidas, a elaboração de sua carta e a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de dezembro de 1948, são eventos que recompõem a trajetória, que outrora fora rompida(3).

O reconhecimento de que uma ordem universal não poderia ficar restrita à tradicio­nal responsabilização dos Estados foi decisivo para que se construíssem os parâmetros jurídicos da responsabilidade penal internacional do indivíduo. As experiências – ainda que polêmicas – dos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio são bastante representativas desta guinada histórica protagonizada pelo mundo que emerge do pós-guerra. A partir de então, o Direito Penal Internacional ganha em envergadura. Não foi por menos que a Assembleia Geral das Nações Unidas, nos idos de 1950, aprovou os chamados “princípios de Nuremberg”, figurando dentre estes a obrigatoriedade de punição de todos os responsáveis pela prática de crimes internacionais(4), independentemente do conteúdo dos ordenamentos nacionais(5).

É certo que a afirmação de um dever punitivo dos Estados nacionais frente aos autores de crimes internacionais foi decisiva para a consolidação da doutrina da imprescritibilidade. É o que revela a Resolução 2338 (XXII) de 18 de dezembro de 1967, da Assembleia Geral das Nações Unidas(6). Portanto, antes mesmo da aprovação da Convenção sobre a imprescritibilidade, o costume internacional(7) já a reconhecia como um princípio geral plenamente vigente. Como anotam Méndez e Covelli(8): “o dever internacional dos Estados de cumprir e garantir o princípio de imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade corresponde também ao dever que os Estados têm de garantir, segundo suas obrigações gerais internacionais, o direito de acesso à administração de justiça e o direito de exigir justiça.” Valorações a parte, o fato é que a doutrina da imprescritibilidade dos crimes internacionais constitui um consenso global tendo sido reiteradamente afirmada nas mais diversas frentes. Tomem-se como exemplos os casos Barrios Altos vs. Peru e Albán Cornejo, ambos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o caso Clavel, julgado pela Corte Suprema de Justiça da Argentina e, enfim, o próprio art. 29 do Estatuto de Roma.

De qualquer modo, a criação de um Tribunal Penal Internacional representa o clímax de um longo processo de formação e de estruturação da ordem penal internacional. Rompe ele, definitivamente, com o mito do monopólio estatal da repressão penal, supondo, dessa forma, a superação dos paradigmas ligados ao conceito tradicional de soberania. Ou seja, a ordem penal internacional pressupõe a consolidação de um parâmetro ético universal que se posicione acima de interesses políticos e conjecturais dos Estados nacionais. É, portanto, fruto de um consenso da comunidade internacional sendo informado por princípios próprios e adequados à gravidade dos males que pretende combater e punir.

Há, no entanto, quem defenda a existência de uma relação hierárquica entre as duas ordens jurídicas – interna e internacional, de modo que a ordem penal internacional deveria submeter-se a uma filtragem constitucional, o que levaria ao repúdio da cláusula da imprescritibilidade prevista pelo Estatuto de Roma. Grave equívoco. Com efeito, a ordem constitucional nacional atende – embora não exclusivamente - as expectativas emergentes das relações indivíduo/Estado, impondo, assim, deveres, obrigações, poderes e direitos entre ambos. Fixa, pois, o indivíduo dentro de uma órbita jurídica e espacialmente determinada onde o Estado exerce a sua soberania. Já a ordem penal internacional sacramenta uma diferente dimensão de relações jurídicas, cujos atores são o indivíduo e a comunidade internacional. Na verdade, ao aderirem à nova ordem, os Estados comprometem, também, todos os seus nacionais que passam, então, a ter um dever de conduta universal. E a inobservância deste abre a perspectiva de exercício do poder-dever punitivo em escala e dimensão internacionais.

É evidente, portanto, que a validade da ordem penal internacional não poderia ficar dependente de um exame sobre a sua compatibilidade com cada uma das ordens constitucionais nacionais. Se assim o fosse, jamais seria factível. Na verdade, o Estado a ela adere, vinculando-se, dessa forma, a uma série de princípios, os quais além, de serem produto de um longo processo histórico, são reputados, pelo consenso mundial, adequados e proporcionais à gravidade e à extensão das ofensas cometidas. Dessa forma, a prática de crimes internacionais gera um interesse punitivo cuja titularidade não fica restrita ao Estado cuja competência seria originariamente exercida. Com efeito, a comunidade internacional também é detentora de um interesse punitivo.

É nesse exato ponto que o princípio da complementaridade (art. 17 do Estatuto de Roma) guarda operatividade. De fato, a disposição assegura o justo equilíbrio entre as jurisdições nacionais e a internacional. Aquelas tem preferência na investigação, no processamento e na punição, de modo que o Tribunal Penal Internacional somente atuaria quando evidenciada a inércia dos sistemas nacionais, motivada por desídia, por falência das instituições, ou mesmo quando revelado o uso artificial dos processos internos. Daí a imperiosa sintonia entre a ordem interna com os compromissos assumidos pelo Estado na arena internacional(9).

Dessa forma, não se pode ler a ordem penal internacional à luz das disposições constitucionais de cada país. E, por mais que inúmeros – e razoáveis – argumentos possam ser opostos à imprescritibilidade como uma opção no tratamento punitivo(10), há sobre ela um consenso quando se tem a frente crimes internacionais cometidos em escala maciça. Consenso, sobre o qual, aliás, os Estados manifestaram a sua plena e independente adesão. Não é possível, dessa forma, subverter o sentido lógico da questão, impondo-se à comunidade internacional a obediência aos valores construídos para crimes que não guardam abrangência internacional e que, portanto, estão jun­gi­dos, exclusivamente, ao poder punitivo de um Estado. Com efeito, uma coisa é o estabelecimento de direitos e garantias fundamentais para um sistema punitivo de abrangência interna e outra bem diferente é a criação de um sistema punitivo internacional, com valores, interesses e finalidades supranacionais. Submetê-los a uma relação de condicionamentos implicaria na projeção internacional de padrões nacionalmente escolhidos o que inviabilizaria, por completo, o estabelecimento da própria ordem mundial(11).

Enfim, para além da caverna, há muito mais do que meras sombras.

NOTAS

(1) ZILLI, Marcos. “O último tango?” In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.) Memória e verdade: a justiça de transição no Estado Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 93-117.

(2) Celso Lafer vê na experiência totalitarista o exemplo mais representativo da ruptura do processo de construção histórica dos direitos humanos e que levou à construção de novos paradigmas jurídicos: “a ruptura tem como marco definitivo o totalitarismo enquanto forma de governo e dominação baseada no terror e na ideologia, cujo ineditismo as categorias clássicas do pensamento político não captam e cujos ‘crimes’ não podem ser julgados pelos padrões morais usuais, nem punidos dentro do quadro de referência dos sistemas jurídicos tradicionais” (A reconstrução dos direitos humanos. Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 80).

(3) PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 150/166.

(4) Por muito tempo, os crimes internacionais foram reconhecidos e definidos pelo direito costumeiro internacional. Atualmente, estão condensados no Estatuto de Roma (arts. 5º a 8º), constituindo os crimes de genocídio, de guerra e contra a humanidade.

(5) “Principle I: any person who commits an act which constitutes a crime under international law is responsible therefore and liable to punishment. Principle II : the fact that internal law does not impose a penalty for an act which constitutes a crime under international law does not relieve the person who committed the act from responsibility under international law…”. O texto foi adotado pela International Law Commission por ocasião de sua segunda sessão realizada em 1950 e foi submetido à Assembleia Geral das Nações Unidas. Ver: Yearbook of the International Law Commission, 1950, vol. II, p. 97. Disponível, igualmente, em: http://untreaty.un.org/ilc/texts/instruments/english. Acesso em 29.06.2009.

(6) Que expressou preocupação com a aplicação da prescrição para os crimes contra a humanidade. “...Noting that the application to war crimes and crimes against humanity of the rules municipal law relating to the period of limitation for ordinary crimes is a matter of serious concern to world public opinion, since it prevents the prosecution and punishment of persons responsible for those crimes…”. Disponível em: http://www.un.org/depts/dhl/resguide/gares1.htm.

(7) O direito consuetudinário sempre desempenhou importante papel no direito internacional não tendo sido diferente na formação do direito penal internacional. Nesse sentido, ver: CASSESE, Antonio. International criminal law. New York: Oxford University, 2003, p. 28-29. Para um exame mais detido sobre a relação princípio da legalidade penal e o costume como fonte do direito penal internacional, ver: GIL, Alicia. Derecho penal internacional. Madrid: Tecnos, 1999, p. 83-92.

(8) MÉNDEZ, Juan; COVELLI, Tatiana Rincón. “Parecer técnico sobre a natureza dos crimes de lesa-humanidade, a imprescritibilidade de alguns delitos e a proibição de anistias”. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.) Memória e verdade: a justiça de transição no Estado Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 392.

(9) Ver: AMBOS, Kai.The legal framework of Transitional Justice: a systematic study with a special focus on the role of the ICC”. In: AMBOS, Kai; LARGE, Judith; WIERDA, Marieke (Eds.). “Building a future on peace and Justice. Studies on Transitional Justice, peace and development. The Nuremberg declaration on peace and justice”. Berlim: Springer, 2009, p. 19-103.

(10) Ver, para tanto, as interessantes considerações filosóficas expostas por Todorov em Memória do mal e tentação do bem: indagações sobre o século XX. São Paulo: Arx, 2002, p. 248.

(11) STEINER, Sylvia Helena F. “O Tribunal Penal Internacional. A Pena de prisão perpétua e a constituição brasileira”. In: Escritos em homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 448-459.

Marcos Zilli
Juiz de Direito.
Professor Doutor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da USP.
Membro do GrupoLatino-americano de Estudos de Direito Penal Internacional

ZILLI, Marcos. A caverna e as sombras. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 201, p. 4-6, ago. 2009.










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