sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Artigo: Defensoria Pública é quem defende mulher violentada

Ainda um pouco tímido e, assim, despercebido, o Capítulo IV (Da Assistência Judiciária), inserido no Título IV, da Lei 11.340/06, trouxe importante e significativa inovação nos sujeitos da relação jurídica processual, quando veiculada matéria atinente à violência doméstica e familiar contra a mulher.
O tema, em suas diversas matizes, como já era sentido no meio jurídico e na sociedade em geral, já não comportava mais tão-somente a tutela jurídico-procedimental via Códigos de Processo Penal (1941) e de Processo Civil (1973), por mais vanguardista ou remendado — como queira o crítico — que seja este último diploma cível.
A primeira justificativa para a novel normatização específica do tema, se funda no fato de que o próprio texto constitucional, no parágrafo 8º, do seu artigo 226, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares, não dissimula seu objetivo de imprimir frontal tratamento jurídico-substancial singular para o drama vivido por milhares de mulheres no nosso país. E até mesmo para que seja sentido nosso comprometimento na ordem jurídica internacional, uma vez que a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos Direitos Humanos, sendo o Brasil signatário fiel e empolgado da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994).
A problemática da violência doméstica e familiar contra a mulher e sua profilaxia efetiva e menos dolorosa desafia aos juristas outro modo de composição desses conflitos. A prática forense revelou que a bifurcação das lides da mulher violentada, mesmo quando veiculadas a mesma causa de pedir, em distintos processos criminais e cíveis (extra-penais), muitas vezes tramitando até em comarcas diferentes — por capricho de legislação insensível — era pesadelo que devia cessar.
Considerado o esgotamento e desespero da mulher violentada, a exigência de que fossem instaladas diversas relações jurídicas processuais, uma a uma, para restauração de cada bem da vida demolido por seu carrasco, mediante ato único, diante de um mesmo Poder Judiciário, com a participação de uma mesma Instituição ministerial, e, ainda, por muitas vezes sob patrocínio de mesmo defensor, acabava por levar a pobre mulher, pela exaustão de suas forças, à renúncia da boa harmonia familiar ou de uma vida em paz. Se não bastasse o escândalo do processo (strepitus processus) sempre presente nessas ações.
Prestimosa a esses reclamos da mulher violentada, a Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, passa, agora, a unificar em um só processado todas e quaisquer causas fundadas na violência doméstica e familiar contra a mulher, penais e não-penais, eliminando-se, assim, a tutela dispersa e trabalhosa que era dada à matéria. Para tanto, criando-se o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com expressa competência cível e criminal para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência contra a mulher (artigo 14).
Acontece que a reunião da legislação material pátria — cível e criminal — para a efetiva, célere e mais adequada prestação da tutela jurisdicional à mulher violentada trouxe sentida transmutação na tradicional relação jurídica processual, desenvolvida perante o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Como cediço, é função institucional do Ministério Público a promoção privativa da ação penal pública e ajuizamento de ações para tutela de interesses difusos e coletivos, sendo-lhe, em absoluto, vedado o exercício da advocacia.
A delimitação constitucional dessa nobre e imprescindível função ministerial, que não comporta flexibilização, acaba por revelar que no híbrido Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a ofendida não deverá encontrar apenas no Ministério Público escora proveitosa para solução de seu comovente drama familiar. Mesmo porque a prevenção e repressão de infração penal, nestes casos, muitas vezes, nem de ligeiro esbarro abranda o sofrimento familiar da mulher. Não passando aos objetivos desta, à maioria esmagadora, pela remessa de seu algoz para o cárcere, mas sim pela ansiosa expectativa de uma vida em paz criada pela Lei Maria da Penha.

 

A nova atmosfera criada pela Lei 11.340/06 é sentida pelo Ministério Público que, não podendo jamais abrir mão de sua sagrada defesa intransigente e combativa da sociedade e das Instituições democráticas, acaba por reconhecer em determinados pleitos da mulher, inclusive em determinadas medidas protetivas requeridas, seara de direito material embaraçosa e forasteira à sua meta constitucional, mais afeta ao interesse privado e disponível da ofendida, que, do mesmo modo, merece proteção e resposta estatal.
Importante realçar que, não olvidando a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para o processo, o julgamento e a execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência contra a mulher, o patrocínio dos legítimos interesses exclusivos da ofendida, a par da repressão penal, não deverão recair sobre a mera e decorativa figura do vetusto assistente de acusação, tímido coadjuvante inserido no Código de Processo Penal de 1941, que nenhum prestígio — ou sequer mera recordação — trouxe ao estudo da vitimologia.
Querer o acerto da relação jurídica de direito material penal deduzida, para, só após, munida de título executivo judicial — sentença penal condenatória —, outorgar-se à mulher, anos após, a possibilidade de liquidação de suas agruras familiares em outro juízo, é anedota doutrinária teimosa que não deve ser contada enquanto vigente o atual texto constitucional e todos os outros diplomas internacionais de Direitos Humanos subscritos pelo Brasil. É por demais óbvio que a Lei 11.340/06 não desejou reservar ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a via singular e infértil da só persecução penal a crime ou contravenção, para sua repressão e prevenção geral, presenteando a ofendida com um sossegado assistente de acusação para melhor perfectibilização de título executivo.
Definitivamente, a isto não veio a esperada Lei Maria da Penha. Inserindo corajosamente a vitimologia em nosso ordenamento positivo no que diz respeito, e, outrossim, reunindo a tutela da mulher violentada em um mesmo contexto procedimental único, traz esse diploma protetivo as seguintes disposições a respeito da principiante relação jurídica processual que a partir de sua vigência deve imperativamente ser instalada perante as ações em trâmite no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, vejamos:
“CAPÍTULO IV

DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA

Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei.

Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acesso aos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendimento específico e humanizado”.

Em vista disso, a destacada ausência de capacidade processual extraordinária ou ilegitimidade para condução do processo pelo parquet, em diversos pleitos privados e seus incidentes, de interesse exclusivo da ofendida, ficam, a partir da vigência da Lei Maria da Penha, ao abrigo e sob o patrocínio da Defensoria Pública, ou de advogado nos casos em que indemonstrada a situação de hipossuficiência.
Colocando-se, assim, o ilustre representante do Ministério Público em peculiar — e desejável — situação processual perante o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Atuará, com efeito, no feito como parte naquilo que disser respeito à prevenção e repressão de infração penal (promoção da pretensão penal/persecução penal) e, obrigatoriamente, como Fiscal da Lei (custos legis) naqueles pedidos cumulados ou incidentes cautelares concernentes ao interesse privado e exclusivo da ofendida, considerada a natureza da lide, eis que a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos Direitos Humanos.

 

Até mesmo em sede de medidas protetivas à ofendida, a Lei 11.340/06 trouxe uma série extensa de providências cautelares, que não guardam, à toda evidencia, nenhuma relação com a recomposição do erário público, com a defesa das instituições públicas ou de interesse difuso ou coletivo. Falecendo, assim, ao Ministério Público oportunidade e pertinência, em diversos casos, do manejo cautelar da promoção de interesses solitários da ofendida. A guisa de exemplo, o pedido de alimentos provisórios à ofendida capaz e maior, assim como a proibição de que o varão-ofensor abstenha-se de promover a alienação de aquestos, em hipótese alguma perpassa pela nobre missão constitucional do Ministério Público na condição de autêntico patrono da parte, mas, sim, pela de fiscal intransigente da lei, da sua melhor interpretação aos fatos sob exame.
O Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, por óbvio, não poderá alargar a missão constitucional do Ministério Público para atos de advocacia, de patrocínio privado dos interesses da parte. Cabendo, assim, ao Poder Judiciário e ao Ministério Público zelar para que em todos os atos processuais a mulher em situação de violência doméstica e familiar esteja obrigatoriamente acompanhada de advogado, garantindo-lhe, ainda, se for o caso, a toda mulher o acesso aos serviços de Defensoria Pública. Sob pena de satisfação apenas dos interesses da sociedade na prevenção e repressão de infrações penais. O que, nem de longe, passa pelos fins sociais a que esse diploma protetivo se destina e, especialmente, às condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar que, insista-se, na maioria das vezes, sinceramente apenas deseja uma vida em paz, rompendo-se a sociedade conjugal, mas sem exclusão de seu carrasco do convívio em sociedade.
Por derradeiro, acerca de forçosa manutenção da legitimidade do Ministério Público para determinadas ações individuais e disponíveis, fora de suas atribuições institucionais, depois da criação da Defensoria Pública, não se pode prorrogar insensivelmente o sofrimento de milhares de mulheres violentadas no Brasil sob o manto acomodado de doutrina intitulada de “inconstitucionalidade progressiva”, que se sensibiliza com o descaso do Poder Público no fortalecimento das Defensorias Públicas.

Por Carlos Eduardo Rios do Amaral
 PantanalNews. 30/09/2009.


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