terça-feira, 13 de outubro de 2009

Artigo: O caos penitenciário... seria mesmo um caos?

O sistema penitenciário é permeado por problemas crônicos, sobejamente debatidos, denunciados, que já foram incorporados por ele, ou melhor, o sistema já nasceu com eles, como nódulos de seu corpo.
Para tratar do chamado “caos peniten­ciário”, criou-se uma CPI do Sistema Carcerário, que teve um longo trabalho de inspeção por todo o Brasil, novas comissões nacionais e internacionais fazem suas inspeções, Conselhos visitam as prisões e fazem seus relatórios e denúncias. Realizam-se eventos, leis são editadas, promessas são feitas nas campanhas eleitorais... e, como diria Focault, tudo continua exatamente na mesma, em matéria de realidade carcerária. Aliás, o que muda é a força de impacto dos qualificativos utilizados. O cárcere, reproduzindo continuadamente o que eles querem significar e muito mais, sobrevive a todos eles.
Os problemas do sistema prisional, embora gravíssimos, não chocam a ninguém mais, tornaram-se “normais”. Nossa boca acostumou-se a dizê-los, nossos ouvidos, a ouvi-los, nosso cérebro, a analisá-los (que é o que se está fazendo neste texto), e nossos afetos, a desconhecê-los. Enfim, eis aí o chamado “caos penitenciário”, uma expressão que já virou sucata e perdeu totalmente seu valor de impacto.
Mas seria mesmo o sistema penitenciário um caos?
Consultando-se o significado da palavra caos no Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio B. de H. Ferreira, 11ª. edição, e também no Michaelis Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, Reader’s Digest (RJ) e Cia. Melhoramentos (SP), 2000, constata-se em ambos a seguinte definição: “confusão de todos os elementos antes de se formar o mundo; grande desordem ou confusão”. Caos, portanto, estaria associado à ideia de total falta de ordem, de sentido nas coisas.
Propõem-se aqui duas hipóteses para a ocorrência do caos. Pela primeira hipótese, tem-se o caos que precede a qualquer organização, ordem e sentido(1). Analogamente, seria a primeira parte da definição dos dicionários, acima transcrita. Os fatos surgem sem qualquer planejamento prévio, à mercê de cada pessoa, animal, objeto ou fenômeno, à mercê das forças emergentes e mais fortes que se sucedem. Seria o caos da inorganização. É possível que, com o tempo, alguma “força” se imponha de forma mais estável e venha a imprimir uma ordem, um sentido, superando-se o caos.
Pela segunda hipótese, tem-se o caos que se instala em dada situação, depois que já existe nela uma ordem, um planejamento, um sentido. Por conta de for­ças emergentes, instala-se uma verdadeira crise e toda a ordem se esboroa, tudo fica à mercê de múltiplas individualidades e o quadro torna-se propício ao surgimento dos mais diversos fenômenos de violência. Seria o caos da desorganização. Também aqui é possível que alguma “força” venha a se impor de forma mais estável e imprima uma nova ordem, superando-se o caos e restabelecendo-se um sentido das coisas.
Pois bem, que tipo de caos seria o cárcere? Da inorganização ou da desorganização? Nenhum deles. O cárcere não é caos algum. Não é da inorganização, porque ele não “nasceu” do acaso, foi sendo pensado e criado em suas diferentes modalidades, sempre teve um sentido e sua sobrevivência já é secular. Também não é da desorganização, porque não se tem conhecimento de que tenha passado por alguma crise que o tenha feito perder seu sentido (ainda que pérfido), sua organização (ainda que totalitária e desumana), sua disciplina (ainda que opressora) ou mesmo sua aparente “indisciplina” (ainda que incrível e sádica). A “indisciplina” do cárcere, com suas “mortes anunciadas” (na feliz expressão de Zaffaroni), é sadicamente programática.
Tudo o que acontece na história fatídica do cárcere, todos os alegados problemas não são expressão de caos algum, mas expressão do próprio cárcere, daquilo que ele é e pretende ser. As tais omissões dos poderes públicos não são omissões por esquecimento, ou devidas a uma lógica de priorização de verbas, mas são omissões programáticas. Ou melhor, não são omissões, são formas de ação, de gestão que se reproduzem unicamente por um motivo: por se tratar de cárcere e para reafirmar o seu sentido.
Enfim, o que se propõe aqui, repetindo-se, provavelmente, com outras palavras, o que já é de comum conhecimento, é que o sistema penitenciário não é um caos, pois o alegado “caos” é seu próprio sentido e sua própria ordem; caso contrário, não existiria cárcere. Ocorre que, ao se dizer isso, se está fazendo um diagnóstico profundamente pessimista, ao qual se segue um prognóstico igualmente pessimista. Se o sistema penitenciário fosse de fato um caos, o prognóstico seria melhor, pois se poderia ter algo para construir: construir uma ordem, um sentido, um sistema de garantias dos direitos da pessoa. Entretanto, ele já tem ordem, tem sentido, e não há espaço para outras construções, desde que ele continue cárcere. Há espaço, sim, para atenuações, mas nada mudará de essencial, desde que continue cárcere.
E por que o cárcere tem esta realidade tão cruel? Por um motivo muito simples: é que ele existe para confinar aqueles que a sociedade, através dos poderes estatuídos, selecionou como seus inimigos. O seu sentido é mantê-los contidos, afastados, sempre na condição de inimigos. Esse é o grande sentido do cárcere. Por isso mesmo ele não é um caos. O que nele parece ser caótico, na verdade é programático.
Qual seria então a saída? A saída é muito simples de ser dita: é fazer com que o cárcere seja cada vez menos cárcere. A saber, é fazer que com que ele se abra cada vez mais e se integre com a sociedade, é incrementar o diálogo entre ele e a sociedade, conforme magistério de Alessandro Baratta. É proporcionar aos presos experiências de liberdade.
Ocorre que, como requisito básico, antes há que se desconstruir a concepção ideológica de que o condenado é um inimigo e como inimigo deve ser tratado. Tal concepção é que dá sustentação ao sentido da prisão. Sua superação é imprescindível para que se desconstrua o cárcere. Tarefa gigantesca. Praticamente impossível, arrisca-se a dizer.
O autor conclui o presente texto com a desagradável sensação de que não disse nada de novo. O que de novo poderia ser dito é o aparente contrassenso de que a desconstrução da ordem do cárcere só será viável quando este de fato se transformar num caos, num caos de desorganização. Nesse dia, é possível que se busque urgentemente uma nova ordem. O caos do cárcere, caos de desorganização, será a grande esperança de sua desconstrução e da busca de uma nova ordem para se restaurarem as relações sociais conturbadas e rompidas.
NOTA
(1) Essa primeira hipótese de caos remete-nos ao pensamento de Nietzsche, tal como exposto por Foucault, no capítulo II de Microfísica do Poder.

Alvino Augusto de Sá, Professor de Criminologia (Clínica) da Faculdade de Direito da USP. Membro do Conselho Consultivo da Revista Brasileira de Ciências Criminais

SÁ, Alvino Augusto de. O caos penitenciário... Seria mesmo um caos? Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 203, p. 15-16, out., 2009.

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