quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Artigo: O crime de estupro e a lei nº 12.015/09: um debate desenfocado

A recente Lei nº 12.015/09 modificou profunda e sensivelmente os crimes definidos no Título VI do Código Penal e, em especial, o crime de estupro, ao revogar expressamente o art. 214, que tratava do crime de atentado violento ao pudor, englobando seu conteúdo típico no art. 213 que, agora, define o novo crime de estupro, com a seguinte redação: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Diante de tal novidade legislativa, inúmeros comentários e interpretações tornaram-se públicos e, como não podia deixar de ser, apresentando significativas divergências.
Dentre tais divergências, a que vem suscitando maior atenção é se o novo art. 213 do CP é um tipo penal misto alternativo ou cumulativo.
Os que defendem tratar-se de tipo penal misto alternativo afirmam que o mesmo apresenta várias condutas – no caso, duas (constranger à conjunção carnal e constranger a outros atos libidinosos) – e que a prática de uma ou outra conduta será suficiente para a caracterização do delito, mas que, entretanto, a prática de ambas as condutas descritas no tipo, em um mesmo contexto fático, caracteriza o crime único(1).
Já os que sustentam tratar-se de tipo penal misto cumulativo também asseveram que o novo art. 213 do CP possui duas condutas, que, por sua vez, caracterizam crimes distintos e autônomos; assim, ainda que em um mesmo contexto fático, cada violação conforma a aplicação de uma pena, gerando o concurso de crimes(2).
A discussão parte da premissa de que o novo tipo penal é um tipo misto, ou seja, estaríamos diante de um tipo que apresenta uma pluralidade de condutas, ora alternativas, ora cumulativas.
Todavia, após uma análise mais detida sobre a recente redação do art. 213 do CP, s.m.j., chega-se à conclusão de que tal controvérsia está desenfocada.
Inicialmente é preciso internalizar que a modificação introduzida pela Lei nº 12.015/09 criou um novo e inédito crime, totalmente diverso das anteriores figuras típicas dos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, ainda que aproveitando parte de seus elementos constitutivos; portanto, na apreciação dessa nova figura penal, é preciso soltar as amarras das antigas definições típicas que, inegavelmente, encontram-se enraizadas em nossa cultura jurídico-penal.
Propõem-se, assim, uma nova leitura do tipo penal do art. 213 do CP.
Da observação dos elementos objetivos do tipo(3), verifica-se que o mesmo apresenta um único verbo nuclear de ação, qual seja, “constranger, que significa obrigar, forçar, coagir, compelir a fazer ou não fazer algo. O núcleo é a ação, representada por um verbo, “que puede venir determinada por circunstancias de la más diversa índole, como sua relación con personas o cosas, su vin­cu­lación con el tiempo y el espacio, la forma y modo de su ejecución, y sus nexos con otras acciones” (4).
Por sua vez, o verbo nuclear “constranger está ligado à forma de execução “mediante vio­­­lência ou grave ameaça” e é completado pelo seu objeto, qual seja, “alguém que venha a ter conjunção carnal ou venha a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Diante de tais elementos objetivos, pode-se afirmar que o novo art. 213 do CP descreve e estabelece uma única ação ou conduta do sujeito ativo, ainda que mediante uma pluralidade de movimentos. Há somente a conduta do agente de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e tal conduta de constrangimento tem como objeto material uma pessoa (alguém), que, por sua vez, deve ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso.
Assim, quem deve ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso é o “alguém”, objeto material da conduta, que, no caso, se confunde com o próprio sujeito passivo. Portanto, após o constrangimento a que foi submetido, este alguém deve praticar os atos libidinosos (postura ativa) ou deixar que com ele se pratique (postura passiva); e, nesses termos, sequer é necessário que a prática, ou a sua aceitação, esteja diretamente relacionada com o sujeito ativo, pois tais atos podem ser concretizados com terceiros.
Anteriormente, o art. 213 do CP definia como estupro o ato de constranger mulher àconjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça, daí se afirmava corretamente tratar-se de crime de mão própria; mas, agora, a nova redação foi sensivelmente modificada ao prever a conduta de constranger alguém a ter conjunção carnal, indicando que a conjunção carnal não precisa ser efetivada com o próprio agente, como ocorria na anterior redação.
Pode-se concluir que a única conduta do agente é a de constranger alguém para a prática ativa ou passiva de atos com fins libidinosos, esse é o fator final que dá sentido aos atos do sujeito ativo e que os abarca em um sentido unitário, para os efeitos da proibição (fator normativo), dado pelo tipo penal(5).
Aliás, é de vital importância observar que o constrangimento é dirigido a que a vítima pratique ou deixe que com ela se pratique atos libidinosos, sejam eles de qualquer espécie, seja através de conjunção carnal, seja através de coito anal, seja através de felação etc., já que tais modalidades nada mais são do que espécies do gênero ato libidinoso, e, tanto isso é verdade, que o tipo penal em questão é explícito ao mencionar conjunção carnal ou outro ato libidinoso, a confirmar, pois, tal afirmação.
Ademais, se a expressão “conjunção carnal” for mentalmente excluída do tipo penal, não há qualquer modificação típica, a demonstrar que não se trata de verdadeira elementar do tipo ou descrição de outra conduta, mas, apenas, significar a expressão da técnica legislativa de exemplificação dos atos libidinosos, como ocorre em outros tipos penais.
E nem poderia ser de outra maneira, pois a alteração legislativa teve como finalidade tutelar penalmente a dignidade e a liberdade sexual de todosos indivíduos, sejam eles do sexo masculino ou feminino, ante a inexistência de hierarquia valorativa entre a dignidade e a liberdade sexual da mulher ou do homem, nos termos do art. 5º, caput, e inciso I, da CF.
Uma não vale mais que a outra, pois ambas possuem exatamente o mesmo direito de proteção penal e sofrem o mesmo dano decorrente das condutas sexuais criminosas, através da prática forçada de todo e qualquer ato libidinoso, cuja conjunção carnal é espécie; e, portanto, nem se alegue que a dignidade sexual feminina seria mais valiosa do que a masculina – o que aparentemente está por trás da fundamentação dos que defendem a existência de duas condutas típicas –, ante a real possibilidade de a mulher engravidar como resultado de um crime sexual, até porque tal situação já foi penal e diferentemente protegida com a causa de aumento de pena do novo art. 234-A, III, do CP.
Assim, diante de tal igualdade, patente que o novo crime de estupro não faz mais a antiga desvaloração diferenciada entre conjunção carnal e os demais atos libidinosos, tratando-os em tipos autônomos. Agora, todo e qualquer constrangimento à prática ativa ou passiva de ato libidinoso contra homem ou mulher tem a mesma desaprovação penal no art. 213 do CP.
Está-se diante de uma nova figura típica que não se confunde com os antigos crimes de estupro e atentado violento ao pudor. E mais, está-se diante de um tipo penal com uma única conduta e não diante de um tipo misto (alternativo ou cumulativo), pois, como visto, não há descrição de uma conduta constrangedora para a prática de conjunção carnal e outra para a prática de atos libidinosos, mas unicamente há a descrição da conduta constrangedora para a prática de todo e qualquer ato libidinoso; consequentemente, a prática de vários atos libidinosos (p. ex. conjunção carnal + coito anal) em um mesmo contexto fático importa na prática de apenas um crime, por corresponder aos exatos termos da única conduta descrita no tipo.
NOTAS
(1) cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Crimes Contra a Dignidade Sexual. Comentários à Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009. São Paulo: RT, 2009.
(2) cf: GRECO FILHO, Vicente. Uma interpretação de duvidosa dignidade. São Paulo, 2009. Disponível em: . Acesso em: 10.09.2009.
(3) Consideram-se elementos objetivos do tipo tudo o que estiver situado fora da esfera anímica do autor, já que o conceito “objetivo” do tipo não pode ficar circunscrito somente ao mundo dos fenômenos externos por se achar misturado com fatores subjetivos e valorações normativas (v. JESCHECK, Hans-Heinrich. Tratado de Derecho Penal – Parte General, trad. José Luis Manzanares Samaniego, 4ª ed. Granada: Editorial Comares, p. 246-247).
(4) JESCHECK, Hans-Heinrich. Op. cit.
(5) cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: RT, 1997. p. 723-724.


Vinicius de Toledo Piza Peluso
Juiz de Direito/SP;
Professor de Direito Penal da Universidade Católica de Santos e da Escola Paulista da Magistratura;
Mestrando em Direito Penal na PUC/SP;
Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM);
Membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP)
 
 
PELUSO, Vinicius de Toledo Piza. O crime de estupro e a Lei. nº. 12.015/09: um debate desenfocado. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 203, p. 02-03, out., 2009.

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