terça-feira, 10 de novembro de 2009

Artigo: Arma Desmuniciada: Efeito Bumerangue das Decisões do STF

A velha polêmica quanto à criminalização do porte ilegal de arma de fogo desmuniciada, em face de recentes decisões, ainda que isoladas do STF, voltou à baila. Isso contraria não só a doutrina moderna a respeito, como decisão da própria Suprema Corte, do STJ e de Tribunais inferiores, o que causou espanto para muitos, e, como não poderia deixar de ser, alegria para outros, em especial para aqueles que, ilusoriamente, vêem no Direito Penal o “remédio para todos os males”. É, na realidade, um vai-e-vem que, além de retrocesso - dependendo da perspectiva focada –, poderá ensejar insegurança jurídica.
Por força da decisão levada a efeito pela Primeira Turma da Corte Suprema, no HC 81057, em que foi relator o então Min. Sepúlveda Pertence, apoiada na melhor doutrina, firmou-se que o porte ilegal de arma desmuniciada e sem acesso à munição não conta com potencialidade ofensiva ao bem jurídico tutelado (incolumidade pública, vida ou saúde de alguém, estes indiretamente). Logo, tal conduta não pode tipificar o crime de porte ilegal a que se refere o art. 14, da Lei nº 10.826/03, que traz a seguinte redação: “Portar, deter... ter em depósito, transportar... manter sob guarda ou ocultar arma de fogo..., acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar”. (Grifo nosso)
Na mesma linha foi a recente decisão (09.06.09) da 2ª Turma da mesma Corte, que teve como relator o Min. Eros Grau (HC 97.811/SP). Ao apreciar um caso onde se processava uma pessoa por porte ilegal de uma espingarda sem munição, concluiu que “a arma desmuniciada ou sem possibilidade de pronto municiamento não configura o delito previsto no art. 14...”.
Ambas as decisões acima apontadas partem de uma perspectiva do bem jurídico e do denominado perigo concreto para concluírem quanto à inofensividade dessas condutas em tais circunstâncias. A lógica desses raciocínios é simples. Se o propósito da norma estampada no aludido art. 14 (e nem poderia ser diferente) é a proteção da incolumidade pública e, conseqüentemente, por via oblíqua, a proteção das vidas ou saúde das pessoas, ou em outras palavras, se a arma, nas circunstâncias, não estava apta a gerar a violência que se quis evitar, não há que se falar em “arma de fogo”. Com efeito, não é razoável punir penalmente alguém só porque portava, tinha sob a posse ou guarda uma arma sem a potencialidade ofensiva (lesiva) visualizada pela norma, ainda que se trate de um crime de perigo. Não basta, portanto, a conduta (aspecto formal, desvalor da conduta); impõe-se verificar a sua possibilidade lesiva (aspecto substancial/material, desvalor do resultado, caracterizado pelo brocardo: nullum crimen sine iniuria). Isso não significa, entretanto, que a arma, em tais situações, não deva ser apreendida. A conduta é ilícita, porém, administrativamente, é o que justifica a apreensão da arma, não obstante atípica para o direito penal, por ausência de ameaça ao bem jurídico penalmente protegido.
No entanto, a lógica jurídico-filosófica das decisões orientadas pelos Ministros Lewandowski (HC 90197) e Ellen Gracie (HC 95073) é outra. Na visão destes ilustres julgadores, para a caracterização do crime previsto no aludido art. 14, basta a análise objetiva da ação de portar arma de fogo (aspecto puramente formal), por se tratar de um crime de mero perigo abstrato, o que torna desnecessária a efetiva exposição de outrem a risco, já que o bem jurídico tutelado é a tranqüilidade social. A análise ou valoração quanto à possibilidade lesiva concreta do bem jurídico tutelado é irrelevante. Com efeito, nessa perspectiva, para a caracterização do delito, basta infringir o texto da norma, sob o ponto de vista formal ou gramatical. Método lógico-formal legalismo, contestado veementemente pela política criminal moderna, em especial a partir da perspectiva do alemão Roxin, considerado o maior penalista da atualidade, sendo seus seguidores, no Brasil, Luiz Flávio Gomes e outros.
A possibilidade intimidativa da arma de fogo, como se referiu a Min. Ellen, deve ser sim considerada para a caracterização do crime de ameaça, roubo. Não, porém, para o crime previsto no supra mencionado art. 14.
Enfim, a confusão (conflito) jurídico-interpretativa está instaurada, vamos acompanhá-la.

Como citar este artigo: ROBALDO, José Carlos de Oliveira. Arma Desmuniciada: Efeito Bumerangue das Decisões do STF. Disponível em http://www.lfg.com.br - 09 de novembro de 2009.

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