terça-feira, 17 de novembro de 2009

De Sanctis: Juízes de garantias vão tumultuar processo penal




Na mesa do juiz Fausto Martin De Sanctis, na Sexta Vara Federal Criminal, em São Paulo, os papéis se ordenam pelas marcações mentais. Há algo de monástico na concentração ao ofício. Movimentos ágeis, a desprender centelhas na hora de expressar discordâncias, ele se apressa em lembrar o volume de trabalho dos juízes de primeira instância. "E nossos prazos são muito curtos!", arfa no início da conversa.
Nesta entrevista a Terra Magazine, De Sanctis analisa os temas de seus livros recém-publicados, "Crime Organizado e Lavagem de Dinheiro" e "Responsabilidade Penal das Corporações e Criminalidade Moderna" (Editora Saraiva), e discute pontos controversos do Judiciário.
O juiz federal conduziu o processo que prendeu e condenou o banqueiro Daniel Dantas, na Operação Satiagraha, em 2008, e também foi responsável pelos casos do banqueiro Edemar Cid Ferreira, da parceria MSI/Corinthians, da construtora Camargo Corrêa (na Operação Castelo de Areia) e do traficante colombiano Juan Carlos Ramírez Abadia.

De Sanctis avalia que o Estado brasileiro precisa modernizar-se no combate à criminalidade moderna. Identifica alguns entraves:
- O Estado brasileiro precisa saber aonde ele quer chegar. Ele assina rapidamente as convenções internacionais, faz promessas para a comunidade internacional de que tem vontade e coragem de prevenir e reprimir as organizações criminosas, mas, na prática, na legislação interna, nada avança, a não ser o discurso antigo da defesa dos direitos e garantias. Não que isso não tenha que ser defendido. Obviamente, tem que haver um equilíbrio entre a eficácia do processo penal e a defesa das garantias.
O juiz De Sanctis também alerta para os riscos embutidos no Projeto de Lei nº 156/2009, do presidente do Senado, José Sarney, que reforma o Código de Processo Penal. Para ele, a instituição do juiz das garantias criaria, na prática, uma "quinta instância" no Judiciário. O magistrado que acompanharia o inquérito não seria mais o mesmo que julgaria o caso. O risco de contaminação com os investigadores, a seu ver, não tem fundamento real.
- Quem investiga é a polícia ou, eventualmente, o Ministério Público dentro daquelas regras possíveis. O juiz, ao deferir, está apenas fazendo um controle judicial... Vai tumultuar, terrivelmente, o processo penal. Porque o juiz que vai receber esse processo, depois do juiz das garantias, tem o poder de rever aquilo que foi feito pelo juiz das garantias - critica De Santis.
E levanta a possibilidade de as alterações do Código de Processo Penal agravarem a lentidão do Judiciário:
- ...Nós estamos caminhando para a falência total do processo penal, que nunca foi e nunca será processado. Nunca o processo vai ter o curso num tempo razoável no País.
Outros projetos de lei criticados pelo magistrado paulista - um deles aprovado na Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados - são os que permitem a repatriação de dinheiro mantido ilegalmente no exterior, com a tributação de 10% a 15% - em síntese, a anistia dos crimes de evasão de divisas e de sonegação fiscal.
- Acho que isso atenta contra o princípio da igualdade. É premiar quem, de forma clandestina e covarde, optou por investir num país que não o seu próprio país. Isso atenta contra as pessoas de bem, beira a imoralidade.
Leia a entrevista com Fausto Martin De Sanctis.
Terra Magazine - O senhor defende que os métodos de investigação tradicionais e o próprio processo precisam se modernizar para punir as novas modalidades do crime organizado. Mas, como tem sido a evolução disso, houve progressos?
Fausto De Sanctis - Os Estados estão se tornando cooperantes e chegando a um consenso: as organizações criminosas de hoje, dado o seu alcance, dado o seu poder de influência e internacionalização, ameaça a integridade dos Estados soberanos. Os fóruns mundiais discutem uma maneira efetiva de asfixiar as organizações criminosas, porque elas estão cada vez maiores e danosas às sociedades. Há uma preocupação no mundo com relação às máfias - China, Japão, em todo lugar. Obviamente, muitos com o foco no terrorismo, mas o terrorismo já está indo pra um segundo plano e voltando pro primeiro plano essa criminalidade econômica da lavagem, a necessidade de atuação via crime de lavagem, para conseguir deter o crime antecedente, que geralmente é muito grave.
Lidar com a existência de fronteiras amplia a complexidade?
Os Estados herméticos e com concepções antigas são um fator facilitador para a impunidade. Houve a necessidade dessa cooperação jurídica internacional e elas têm se dado cada vez mais flexibilizada, vamos dizer assim. A formalidade existe, mas de uma maneira menos rigorosa, de tal forma a poder rapidamente conseguir as informações necessárias e até mesmo o sequestro e detenção de bens.
Como o senhor avalia o Estado brasileiro nesse estágio?
O Estado brasileiro precisa saber aonde ele quer chegar. Ele assina rapidamente as convenções internacionais, faz promessas para a comunidade internacional de que tem vontade e coragem de prevenir e reprimir as organizações criminosas, mas, na prática, na legislação interna, nada avança, a não ser o discurso antigo da defesa dos direitos e garantias. Não que isso não tenha que ser defendido. Obviamente, tem que haver um equilíbrio entre a eficácia do processo penal e a defesa das garantias. O processo penal tem que gerar, conforme a Constituição determina, um resultado útil. É marca da Constituição Federal a moralidade e a eficiência dos órgãos públicos. E isso não está havendo no campo criminal, efetivamente não está no campo econômico, lavagem e tudo mais.
Há alguns empecilhos internacionais também, não? O senhor representou à ONU e ao Gafi (Grupo de Ação Financeira Internacional) contra a Suíça, no processo relacionado à Credit Suisse. Como são essas barreiras internacionais às investigações?
Não posso falar de caso concreto. Mas, falando em termos gerais, o mundo não aceita mais Estados não-cooperantes. Quando isso ocorre, ele é chamado para justificar o porquê da medida. Então, Estados que eventualmente se recusam a fazer citações da Justiça de um País requisitante, isso é considerado uma violação das posturas e das convenções internacionais. Agora, existe a possibilidade de um Estado invocar, eventualmente, a ausência de crime em seu País. Mas isso não veda o Estado a negar ajuda a outro Estado. Por exemplo, um Estado pode falar: não bloqueio bens porque isso não é crime, mas ele jamais pode deixar de dar informações ao Estado onde isso é crime. Outro exemplo é as off-shores. Existe um sigilo que está dentro da atividade envolvida na "offshore", mas esse sigilo não vale para as autoridades processantes, legítimas processantes. A comunidade internacional exige hoje desses países considerados paraísos fiscais que eles tenham, sim, o dever de comunicar todas as solicitações das justiças dos países requerentes. Não pode mais se invocar o princípio da confidencialidade dos negócios. Não vale pra jurisdição penal.
Os Estado Unidos são mais avançados nisso?
Os Estados Unidos cobram, exigem as informações dos países. Obviamente, os Estados Unidos têm um ganho de atuação por conta de seu poderio econômico. Quando os Estados Unidos solicitam algo para um paraíso fiscal, é muito mais provável a colaboração do que o Brasil pedindo. Por isso que, por vezes, o Brasil prefere solicitar via Estados Unidos a colaboração do paraíso fiscal. Porque uma coisa é os Estados Unidos pedirem, outra é o Brasil pedir ao paraíso fiscal.
No Brasil, operações contra crimes de colarinho branco sempre provocam uma comoção social maior do que nos demais casos. Nos Estados Unidos, o processo contra o fraudador Bernard Madoff, emblemático para o sistema financeiro, andou muito mais rápido do que andaria num similar brasileiro. Quais são os entraves para haver punição de crimes econômicos no País?
O importante é o seguinte. É interessante essa pergunta porque muitas vezes os juízes são criticados como se fossem inimigos das pessoas com poder econômico. Não é verdade. Todo aquele que ganha licitamente seus bens, dentro do sistema, legítimo, tem mais que desfrutar desses bens. O que os juízes têm defendido é a aplicação do princípio da igualdade de maneira efetiva. Violou a lei? Não importa qual a classe, qual a cor, qual é a religião... Não importa. Violou a lei, tem que ter a resposta da lei. Porque a lei nada mais é do que a vontade popular. O rompimento da lei é o rompimento do pacto social que está por trás da lei. Se a lei é ou não é legítima, é outra questão. Mas ela é, teoricamente, legítima, promulgada pelo Congresso Nacional, e tem que ter aplicação contra todas as pessoas. Não pode existir grupo privilegiado que fique sempre acima da lei.
Como o senhor analisa o projeto de lei para anistiar o crime de evasão de divisas, se o dono do dinheiro repatriar, pagando um tributo de 10% a 15% sobre o montante?
Acho que isso atenta contra o princípio da igualdade. É premiar quem, de forma clandestina e covarde, optou por investir num país que não o seu próprio país. Isso atenta contra as pessoas de bem, beira a imoralidade. A justificativa econômica não se fundamenta, o País não precisa disso hoje, está mais do que provado. Também não há certeza de ganho econômico. E o pior disso tudo é falar-se que o dinheiro que virá não seria de crimes graves. Isso é mascarar a realidade. Porque não dá pra separar o que é, o que não é, até porque o projeto garante o anonimato dessas pessoas. Não vejo como isso se sustentar. Réu já chegou pra mim e falou: "Doutor, eu realmente fiz algo que não devia. Peço desculpas". Não tem nenhum juiz, autoridade ou órgão público que vai pegar essa pessoa e vai fazer algo incompatível com o que ela está falando. Jamais um juiz vai aplicar uma pena de prisão a uma pessoa dessa. Jamais um órgão de Estado vai vir com aquela postura. Não é porque está fazendo uma distinção, mas porque não há necessidade. Agora, a pessoa vir desafiar o Estado e ainda querer benesses do Estado, isso é inconcebível, incompatível com a moralidade pública.
E há a delação premiada.
Ele pode fazer uma delação premiada, mas ele pode também confessar. Confessar também é um benefício e também reduz pena. É um ônus. Essa pessoa se arriscou, aplicou no exterior e agora quer que isso não valha? Isso é a legitimação do "jeitinho". É a coisa mais simbólica, concreta, de que o "jeitinho brasileiro" não é uma falácia. É real.
O senhor também faz críticas ao Projeto de Lei 156. Há incompatibilidade de o juiz que acompanha o inquérito ser o mesmo que vai julgar o processo?
Pelo contrário. O juiz que indefere - porque o juiz também indefere - sabe o que está correndo e ele, sim, tem condições melhores que qualquer outro juiz de julgar conforme a verdade trazida no processo. Vou lhe dar um exemplo. Recentemente chegou um processo, vindo por redistribuição, processo gigantesco do interior (do Estado de São Paulo). Chegou pra mim porque o juiz, de repente, entendeu incompetente. Agora, pra eu tomar conhecimento de um processo gigantesco, de uma operação que foi gigantesca, isso é uma perda de conhecimento que é contraproducente pro Estado. O Estado, o juiz, quando ele defere uma medida cautelar, como a interceptação, não significa que ele é o detentor da investigação. Quem investiga é a polícia ou, eventualmente, o Ministério Público dentro daquelas regras possíveis. O juiz, ao deferir, está apenas fazendo um controle judicial. Essa discussão não tem razão de ser, não há justificativa real, em números, que contemple uma mudança radical como a que se pretende com a criação dos juízes das garantias.
Isso pode agravar a morosidade do Judiciário?
Não tenha dúvida. Vai tumultuar, terrivelmente, o processo penal. Porque o juiz que vai receber esse processo, depois do juiz das garantias, tem o poder de rever aquilo que foi feito pelo juiz das garantias. Por outro lado, esse novo juiz processante, que é de primeiro grau, também pode ser chamado a decidir medidas cautelares, e aí não há contaminação, não há a tal da parcialidade? E assim vai. No Tribunal, o relator que decidir medida cautelar não pode mais julgar o feito, vai ter que ir pra outra pessoa que também tem o poder de rever. Quer dizer, nós estamos caminhando para a falência total do processo penal, que nunca foi e nunca será processado. Nunca o processo vai ter o curso num tempo razoável no País. E vai gerar, certamente, a prescrição do feito.
Alguns juristas apontam os códigos processuais como a origem da lentidão da Justiça brasileira. O senhor concorda com esse diagnóstico?
Concordo em parte. O Código do Processo Penal tem recursos anacrônicos, confere mecanismos indiretos de procrastinação. Isso é inconcebível, mas, se o Código é imperfeito, cabe ao Judiciário, com a experiência que tem, fazer as avaliações e as interpretações devidas. O que os juízes de primeira instância às vezes observam são reformas de decisões por pessoas que não sabem o que está acontecendo e a orquestração que está sendo desenvolvida pelas partes. E isso é inconcebível. Orquestrar a Justiça é uma ofensa ao Estado de Direito.
Muitos embargos de declaração?
Embargos de declaração não. É arrolar testemunha que não existe, endereço de testemunha que não existe, solicitação de cópias o tempo todo, todos os dias, para o processo não andar, para o inquérito não andar e assim por diante. O Judiciário tem que estar ciente disso, do primeiro grau até o último, porque é uma maneira de procrastinar, e não é legítimo. Direito de defesa não é abuso de direito de defesa. Direito de defesa é defender, legitimamente, a pessoa diante da lei e com respeito à Justiça. Respeitar a Justiça é respeitar o povo. Porque todo poder emana do povo. Então, é isso que se espera. A autoridade, seja ela quem for, de qualquer instância, de qualquer poder, ela tem que servir ao povo e não ser servil, o que é bem diferente. Servir é com responsabilidade, atendendo as necessidades mínimas, físicas e intelectuais da população. Não adianta decidir com base em teses acadêmicas, que são maravilhosas, mas elas não servem na prática. As teses acadêmicas podem eventualmente servir, mas tem que ser sentidas como teses acadêmicas. Porque a interpretação radical para uma parte significa a anulação de outra. E isso o Estado brasileiro não pode tolerar.
Na destinação de bens judiciais, surgiram algumas decisões inovadoras na Sexta Vara Federal, com doações de obras e recursos para museus, entidades carentes, como agora o teatro da Casa do Cristo Redentor, em Itaquera (São Paulo). Qual é a dimensão que isso tem tomado na Justiça brasileira?
Hoje mesmo acabei de tomar conhecimentos de juízes de outros Estados fazendo também alienações antecipadas. Recentemente, fui questionado por autoridades estrangeiras, que acharam interessantíssima a atuação da Justiça brasileira nesse aspecto. Porque não tem como preservar um bem por muito tempo, sem prejuízo ao próprio bem. Interessa ao acusado que esse bem seja vendido, porque, caso ele seja absolvido, vai receber o valor corrigido no final. Muito melhor do que receber algo imprestável. Fora as alienações de bens, a Justiça Federal, nas delações premiadas, nas colaborações premiadas, tem solicitado valores que são pagos a título de contribuições voluntárias a entidades beneficentes cadastradas, com oficiais justiça comparecendo.
Com projetos?
No começo não havia projetos específicos, mas com o passar do tempo a prestação de contas fica muito mais fácil quando a pessoa fala: o projeto é esse, isso custa tanto, a Justiça determina uma verba. Isso é muito mais fácil de controle, é dinheiro destinado, é um dinheiro que foi recebido via Justiça, é quase que público. Essa preocupação social tem que ter sempre. De um modo geral, os juízes estão indo por esse caminho. É a maximização do Direito Penal, fazer com ele o que é de mais útil à sociedade, revertendo pra sociedade sem prejuízo dos direitos individuais do acusado.
Houve também o caso do traficante Abadía. Ele admitiu e teve o bazar.
No Abadía, as pessoas compraram os bens tendo ciência de que se tratava de um leilão e bazar beneficentes. Em vista dessa aquisição com esse propósito, a Justiça Federal destinou, salvo engano, 35% do que foi arrecadado para entidades beneficentes. Até porque ele abriu mão dos bens, nunca pediu a devolução e até não está mais no País, por conta de extradição. Achei que era um dever da Justiça responder a um reclamo popular, já que a população colaborou, passou por momentos difíceis, teve uma fila, problemas na aquisição dos bens. Achei que nada mais justo do que reverter à sociedade conforme a Justiça se comprometeu a fazer. É uma prestação de contas social. O restante do valor está em depósito em conta e pode um dia também ser revertido à sociedade.
O senhor lançou dois livros teóricos, jurídicos, mas escreveu um ficcional, inédito, "Montoya de Sorrento". Vai lançar?
Esse livro está sendo gerido, já foi escrito, está praticamente pra ser lançado no ano que vem. Mas eu não sei o que vou poder falar do livro!
Autobiográfico?
Um livro de ficção. É sobre um juiz, mas é um livro de ficção (risos).

Terra Magazine

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