sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Rec, rec, rec1

O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho."
João Guimarães Rosa
Sagarana

"Quase sempre, a sombra do bicho é maior do que o bicho."
apud Cláudia Suannes
- Você sente medo, vô?
Vou-lhe contar uma história sobre o medo. Quando eu era criança, um pouquinho mais velho do que você ...
- Mas eu não sou velho, vô. Velho é o senhor.
Tens razão. Eu mudo a frase. Quando eu não era mais tão novinho como você é hoje ...
- Assim está melhor.
Continuando: quando eu já não era tão criança como meus queridos netos, eu dormia sozinho num quarto, que era também o meu escritório. Lá eu tinha, além da cama e de armário de roupas, uma escrivaninha e uma estante de livros, até porque eu sempre gostei muito de ler. Livros com histórias do Tarzan, o rei da selva, ou com as narrativas do Monteiro Lobato eram os meus preferidos. Ali eu fazia lições de casa, e aproveitava para treinar bola-ao-cesto.
- No quarto, vô? Que maneiro!
É que, quando eu errava o que estava tentando escrever, eu amassava a folha de papel, formando uma bola, que eu arremessava na cesta de papel que havia no canto da parede. Não conte pra ninguém, mas às vezes eu errava e a bola ficava no chão, fora da cesta. Quando terminava de fazer a lição, eu recolhia todas aquelas bolas de papel e arrumava o quarto, para não merecer o castigo que a fera da minha mãe me impunha.
- A bisa te batia, vô?
Quando era preciso, sim. Mas geralmente o castigo era ficar sem sobremesa.
- Eu prefiro um puxão de orelha.
Mas eu devo dizer que os castigos eram raros. Pois certa noite, eu fiquei fazendo a lição até muito tarde. Aquilo me deixou tão cansado que eu fui dormir sem arrumar o quarto. Acho que nem pijama eu pus.
- Que exagero, vô!
Podes crer. O fato é que eu caí no sono logo, mas acordei de madrugada, tudo ali muito escuro e um barulho estranho no quarto. Era um rec, rec, rec, como se alguém estivesse serrando madeira.
- Maior medão!
Bota medo nisso. Eu pensei que fosse um ladrão querendo serrar a porta para entrar no meu quarto. Veja se pode.
- E não era, vô?.
Eu fiquei com tanto medo que não conseguia sair da cama. Acho até que fiz xixi no lençol. E aquele rec, rec, rec não parava. E aquela escuridão que parecia cada vez maior. Acho que sua mãe está chamando. Amanhã eu conto o resto.
- Não vem com essa, vozão. Minha mãe não está me chamando nada. Isso é invenção sua.
Se você ficar sem sobremesa, não ponha a culpa em mim.
- E eu lá sou homem de não assumir o que eu faço, vô?
Senti firmeza, guri. Então vamos em frente ...
- ... que atrás vem gente!
Aprendeu, hein? Pois bem. Aí o macaco perguntou à coruja:
- Nem macaco, nem meio macaco, vozão. Não mude de história, que esse teu truque é muito manjado. Você mistura duas histórias, pensando que eu sou bobo pra cair nessa. Quero saber se o ladrão entrou ou não entrou no teu quarto. Você parou a história quando estava fazendo xixi na cama.
É verdade. Ainda bem que eu tenho você para me ajudar. Eu estava na cama, embaixo das cobertas, morrendo de medo, e aquele rec, rec, rec ecoando no quarto. Fechei os olhos e rezei todas as orações que eu conhecia. Sabe que aquilo me deu coragem? Eu disse a mim mesmo: afinal de contas, você é um homem ou um rato?
- E que foi que você respondeu pra você, vô?
Eu disse: qüim, qüim, qüim.
- Já sei: você se achava um rato.
É isso aí. Mas, em seguida, eu mesmo respondi: o Mickey também é um rato, mas ele tem coragem. Empurrei as cobertas, sentei-me na cama, enchi o peito de ar e pensei: se o Tarzan pode, por que eu não haverei de poder?
- Esse é o meu vozão!
Obrigado. Levantei-me da cama e avancei na direção do interruptor de luz, que ficava na parede do outro lado do quarto, sem me importar com o rec, rec, rec. Tás pensando o quê?
- Grande, vô!
Acendi a luz e descobri de onde vinha aquele barulho.
- Não era um ladrão?
Qual ladrão nem meio ladrão, como diz você. Era um escaravelho.
- Escara-velho?
Não conhece? Esse inseto é um pouco maior do que o besouro e tem uma particularidade: ele se parece com o rinoceronte. Conhece?
- Claro. Então eu não vejo o Animal Planet? Tremendo trator!
Então você deve saber que rinoceronte significa "chifre no nariz". Pois o escaravelho também tem uma espécie de chifre na cabeça, voltado para trás. E os dois têm outra particularidade: eles só avançam. Eles não conseguem andar para trás.
- Já saquei. O câmbio deles não tem marcha à ré.
Mais ou menos isso. Aí é que estava a origem daquele rec, rec, rec.
- Não saquei, vozão.
Eu explico. O tal escaravelho entrou no meu quarto, vindo do jardim da casa. No fim da tarde alguém fechou a janela e ele não pode voltar para lá. À noite ele se pôs a andar pelo assoalho e trombou com uma das bolas de papel que havia ficado no chão. Ele foi avançando e levando a bola sempre para a frente. Quando a bola encostou na parede e parou, o escaravelho, cujo câmbio não tinha marcha à ré, continuou a pisar no acelerador, patinando dentro da bola de papel. Aquele rec, rec, rec era o barulho produzido pelas patas dianteiras dele contra o papel.
- Legal! Aí você matou o mini-rinoceronte e foi dormir.
Matar por que? Ele é um inseto inofensivo. Eu retirei o bichinho da bola onde ele estava preso, pus na palma da minha mão, abri a janela e ele voou para a casa dele. Vai ver que naquela noite o neto dele teve de dormir sem ouvir alguma história interessante.
- E ele levou com ele o teu medo, não foi?
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1Do livro Descontos para Meus Netos (inédito)
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  A coluna Circus, integrante do site Migalhas (www.migalhas.com.br), é assinada pelo ilustre migalheiro Adauto Suannes, autor do livro "Justiça & Caos" (clique aqui). Conheça também o blog do colunista clicando aqui.

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