domingo, 14 de março de 2010

Artigo: “Direitos humanos para humanos direitos”: um apotegma ou apenas um quiasmo?

“As palavras são signos aprendidos, marcas de uso cultural e, a um só tempo, traços riscados pelas pulsões indestrutíveis da vida e da morte”.
Alfredo Bosi
Quando se fala em Direitos Humanos, as reações são geralmente diversas, dependendo do círculo onde o assunto é tratado. Mas é sempre preferível que um tema desperte discussão a apatia. Porém, discussão a respeito de uma idéia envolve conceitos assimilados (preconcebidos), o que se admite. Não se admite, entretanto, preconceitos (assim entendida uma hostilidade ou intolerância decorrente de ideia generalizada e não questionada). Vale esclarecer: pré-conceitos são normais (e até necessários, pois ninguém pode discutir sobre o que sequer conhece); preconceitos são execráveis em qualquer debate.
Em virtude do tema a que nos propomos, é conveniente, primeiro, estabelecer algumas noções. A mais difícil delas é a de direitos humanos e, por isso, vamos deixá-la para depois. Comecemos com as mais simples.
Apotegma, ensina Sebastião Cherubim (1989, p. 17) é “sinônimo de aforismo, máxima e outros termos equivalentes”; trata-se de uma forma de manifestar um pensamento “de modo lapidar, conciso e claro” e que encerra “um saber baseado na experiência de figuras ilustres antigas e digno de lembrança e imitação”. Exemplos não faltam e, para não nos perdermos, fiquemos com Celso: “jus est ars boni et aequi” (que Carlos Maximilianotraduz como “o Direito é a arte do bem e da equidade” – 1991, p. 170). Na cultura jurídica, as máximas e brocardos sobejam e a elas Carlos Maximiliano dedica um capítulo de sua clássica obra sobre Hermenêtica (1991, p. 239 e seguintes).
Já o quiasmo é a figura de linguagem consistente na repetição de palavras com a inversão da ordem (CHERUBIN, 1989, p. 56). O termo vem do grego“khiasmós” (HOUAISS, VILLAR, 2001, p. 2.357) e significa disposição em cruz; como figura de linguagem, trata-se da repetição de palavras em forma cruzada (invertida), formando um paralelo. É um recurso que teve grande aplicação, por exemplo, na literatura barroca, como nestes belos exemplos do “Sermão da Terceira Dominga Post Epipha niam”, de 1641, doPadre Antonio Vieira: “Eu [...] posso quanto quero, porque só quero quanto posso” (1993, p. 525) e “quem quer menos do que pode, sempre pode mais do que quer” (id., p. 537). Do mesmo sermão, um exemplo do que, com apoio de Eugênio Gomes, poderíamos chamar de figura serpentinata(1975, p. 10) da prosa barroca: “o rico que quer mais do que pode, é pobre; e o pobre que quer menos do que pode, é rico. O rico que quer mais do que pode, é pobre, porque lhe falta o mais que quer; e o pobre que quer menos do que pode, é rico, porque lhe sobeja o mais que pode” (1993, p. 537-538).
Temos, assim, que o apotegma é uma máxima e o quiasmo um recurso de inversão dos termos de uma frase. Portanto, “direitos humanos para humanos direitos” tanto pode ser um, como outro, como ambos. Que é um quiasmo, não nos resta dúvida: “direitos” é substantivo, “humanos” é adjetivo e “para” preposição simples que subordina os elementos que introduz, ou seja, “humanos”, agora como substantivo, e “direitos”, como adjetivo. Teríamos, então:
substantivo direitos+adjetivo humanos+preposição para+substantivo humanos+adjetivo direitos
Haveria nesta figura de retórica algum ensinamento (apotegma) a ser seguido? Para tanto, necessário responder à terceira pergunta sugerida pelo título. O que são direitos humanos? Alessandra Facchi, apoiada emNorberto Bobbio, lembra a variação histórica da ideia de direitos humanos e a dificuldade de se estabelecer um conceito a respeito deles (2007, p. 14, nota 10). Entretanto, aponta a autora que os direitos humanos são a expressão dos valores e necessidades essenciais da pessoa humana (ibid.). Ou, como ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho“esses direitos são as prerrogativas que, por emanarem diretamente da natureza humana, são intangíveis, inalienáveis, imprescritíveis” (2007, p.15-16). Portanto, quando falamos dos direitos humanos, queremos dizer sobre aqueles direitos ínsitos aos homens, decorrentes apenas de sua condição humana e absolutamente invioláveis.
Ora, se os direitos humanos se referem a garantias inerentes ao ser humano, a sua defesa não pode ser limitada a determinados grupos ou pessoas em condições específicas. Há de ser ampla e abrangente e, assim, compreender a todos. Assegurar os direitos humanos a “humanos direitos” exigiria, primeiramente, estabelecer quem seriam estes. São humanos direitos os que cumprem as leis? Mas quem cumpre todas as leis? E quem cumpre as leis é “direito”? Não foi a escravidão suportada por muito tempo em normas legais? E quem não comete, ainda que eventualmente, alguma ilegalidade? Portanto, aquele que cumpre a lei não é exemplo de “humano direito”. Seria aquele que segue os princípios morais? Em discurso de 1891, Rui Barbosa já alertava: “Jogar com os princípios, quando eles coincidem com as nossas conveniências, e desprezá-los, quando eles as contrariam, é o vezo e a desgraça dos povos sem moral política nem educação liberal, como o nosso” (1949, p. 301). A atualidade do pensando do jurista baiano desautoriza estabelecer que seriam “humanos direitos” aqueles que os princípios morais assim indicam.
Críticos mais radicais poderiam argumentar que, para a sociedade atual, seriam “humanos direitos” apenas os brancos, com nível superior e integrantes, no mínimo, da classe média. Mas radicalismos servem mais para obstruir do que para ampliar entendimentos e debates.
Por outro lado, não seriam “humanos direitos” os infratores das normas penais e que vivem à margem dos benefícios do Estado? Pessoas que moram em favelas sem serviço de água e esgoto, sem segurança, sem escola? É óbvio que moradores de favelas não são criminosos, assim como se sabe que aqueles a quem o Estado menos dá atenção poderão ter menos respeito pelas normas do próprio Estado. Surge, nestes, a dúvida: por que alguém iria respeitar as ordens de quem sequer lhe dá ouvidos?
Não se pode, portanto, definir “humanos direitos”. Até porque, se tal fosse possível, teríamos de criar a categoria de “humanos-não-direitos” ou “humanos tortos” o que seria de mais difícil, senão impossível, conceituação.
Direitos humanos são para humanos, sejam eles “direitos” ou “tortos”. Afinal, “tortos”, já nos ensina Drummond, no “Poema das sete faces”, podem ser até os anjos. A todos – sejam ou não reconhecidos e respeitados pela sociedade na qual se encontram – corresponde, na clássica expressão de Hannah Arendt, “a existência de um direito de ter direitos” (2007, p. 330). E esse “direito a ter direitos”, como deixa bem claro a filósofa, se aplica até mesmo àqueles que não integram juridicamente o Estado, como é caso dos apátridas; tal direito socorre os “humanos direitos” e os humanos sequer reconhecidos pelo Direito.
O que não se pode admitir é que entidades que tenham por objetivo a defesa dos direitos humanos limitem-se a reconhecê-los apenas em um segmento da população, em prejuízo de outros. Da mesma forma que não se pode pretender que aqueles que tenham o Estado ao seu lado, contem com apoio institucional ou de órgãos de classe, mereçam o mesmo tratamento daqueles que jamais tiveram qualquer apoio para se organizar ou para quem o Estado jamais voltou os olhos preventivos, mas tão somente os repressivos.
Verifica-se, assim, que a expressão “direitos humanos para humanos direitos” jamais pode ser considerada um apotegma, embora há de ser reconhecida como um quiasmo (ou uma antimetábole, para os mais exigentes em terminologia). A expressão mal disfarça uma verdadeira antítese, que, em linguística, “é um modo de expressão, que consiste em opor no mesmo enunciado duas palavras, ou grupo de palavras, de sentido oposto” e cujo uso é “frequente na forma adversativa: uma negação à qual se opõe uma afirmação, ou vice-versa” (Dubois et al., 1993, p. 56). Assim, a limitação aos “humanos direitos” seria a negação da existência dos direitos humanos, uma vez que o reconhecimento de sua realidade é absolutamente incompatível com qualquer forma de exclusão ou limitação. Como assegurar direitos humanos para “humanos direitos” se não há como definir “humanos direitos”...? Como afirmar que os direitos humanos se prestam a defender uma parcela da população e não outra, de igualmente humanos? Então não estamos falando de direitos humanos, mas sim de direito de grupos humanos – e aqui não podemos nos esquecer que discurso semelhante sustentou políticas segregacionistas como a de Adolf Hitler, para ficarmos em um dos mais lúgubres exemplos.
Todas as pessoas têm direito à proteção de seus direitos. Como afirmaHannah Arendt, com o peso de sua história pessoal, todos têm direito a ter direitos. E tal proteção há de ser efetiva, porque simular proteção é o mesmo que negá-la.
A proteção há de se apoiar na lei. Para tanto, além de legítima, a lei deve ser conhecida por todos, uma vez que é no princípio da legalidade que se assenta o tão buscado Estado Democrático de Direito. A consciência do valor da norma e de sua legitimidade é requisito imprescindível para que os direitos humanos sejam respeitados e exercidos. Em discurso de 1914,Rui Barbosa já advertia que é “o maior dos males fazer crer ao povo, fazer crer aos pequenos e aos humildes que a lei não se apóia senão na força, que a lei não respeita a moral, que todos estes sentimentos humanos de respeito ao direito, de observância dos nossos deveres são invenções sem valor, que não existem senão para aqueles que as não podem violar” (1948, p. 89).
O cumprimento das leis é, desta forma, o meio para que os direitos humanos sejam assegurados a todos os seus destinatários, quais sejam, todas as pessoas. O Estado pode se valer de formas diversas para negar esses direitos, utilizar meios eficientes para enganar, manipular, cegar a população: seja por meio do discurso demagógico e populista dos tempos atuais, seja por meio de uma política autoritária e violenta de algumas décadas passadas; ou então, seja por meio de suas instituições compromissadas mais com benefícios pessoais que com o bem comum ou por meio de uma burocracia canhestra cuja função é obstaculizar e não garantir o exercício de direitos.
Tornar os direitos acessíveis a todos é dever do Estado. Conhecê-los e cobrá-los é direito da população. Auxiliar este conhecimento e esta cobrança é a missão de organizações efetivamente vinculadas à defesa dos direitos humanos.

BIBLIOGRAFIA

ARENDT, HannahOrigens do totalitarismo (trad. Roberto Raposo). São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
BARBOSA, RuiObras completas. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949, v. 18, t. 1.
_____. Obras completas. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1948, v. 41, t. 2.
CHERUBIM, SebastiãoDicionário de figuras de linguagem.São Paulo: Livraria Editora Pioneira, 1989.
DUBOIS, Jean et al. Dicionário de Linguística (trad. Frederico Pessoa de Barros et al). 9a ed. São Paulo: Cultrix, 1993.
FACCHI, AlessandraBreve storia dei diritti umani. Bologna (Itália): Il Mulino, 2007.
FERREIRA FILHO, Manoel GonçalvesEstado de Direito e Constituição. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
GOMES, Eugênio. Apresentação. In: VIEIRA, Antonio. Sermões. 7ª ed, Rio de Janeiro: Agir, 1975, p. 5-12.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de SallesDicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
MAXILIANO, CarlosHermenêutica e aplicação do Direito. 11a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991.
VIEIRA, António. Obras completas do Padre António Vieira. Porto (Portugal): Lello & Irmão, 1993, vol. I.


Eduardo Augusto Paglione, Delegado de Polícia, Professor da Academia de Polícia Civil de São Paulo.


Boletim IBCCRIM nº 207 - Fevereiro / 2010.

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