domingo, 14 de março de 2010

Artigo: O ministério público de garantias

A Súmula 234 do Superior Tribunal de Justiça dispõe que “a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia”. Este é o entendimento pacífico esposado por aquela Corte em inúmeros de seus julgados.
Ocorre que diante do quadro que se aproxima, parece o referido texto finalmente estar com seus dias contados.
Muito se tem noticiado na imprensa que a Comissão de Reforma do Código de Processo Penal, criada pelo então Presidente do Senado Federal – senador Garibaldi Filho – para atualizar a nossa legislação no referido campo, arcaica e ultrapassada, está por criar no nosso ordenamento jurídico a figura do chamado “juiz de garantias”, a quem caberá a supervisão da condução das investigações pré-processuais e, assim, estará impedido de atuar no processo após oferecimento de denúncia.
A finalidade da referida criação legislativa é nobre e claramente visa a garantir que o juiz possa exercer de forma serena e apropriada sua principal e mais importante missão: julgar com imparcialidade e longe de pressões externas. Tal intenção foi bem resumida pelo periódico Estado de São Paulo do dia 12 de janeiro de 2009, quando a comissão responsável pela elaboração do Projeto de Lei sequer havia finalizado seus trabalhos. Ali restou consignado como seria o funcionamento deste “novo juiz”, in verbis:
“Para pôr fim a esse problema e assegurar a imparcialidade dos julgamentos, a Comissão de Reforma do Código de Processo Penal instalada pelo Senado quer que dois juízes passem a atuar nas ações criminais, a exemplo do que ocorre, por exemplo, nos Estados Unidos, na França, na Itália e no México. O primeiro atuaria na fase de inquérito como um “juiz de garantias”, tendo competência para controlar as ações policiais, decretar prisões preventivas, autorizar buscas e apreensões e determinar quebra de sigilos. Concluídas as fases de investigação policial e de instrução do processo, o “juiz de garantias” seria substituído por um magistrado que não teve contato com a produção de provas. Ele teria competência para decidir a causa no mérito, julgando os fatos e decidindo com isenção e imparcialidade”.
É certo que o referido projeto ainda não virou lei, porém, partamos aqui da premissa de que a proposta seja aceita para desenvolver nosso texto, cuja ideia – “o Ministério Público de Garantias” - pode até servir como sugestão para inclusão no texto final do projeto.
Nossa proposta, conforme já adiantado, seria a criação do “Ministério Público de Garantias”.
Partindo-se do princípio de que os próprios membros do Ministério Público se escudam por trás de sua condição constitucional de fiscais da lei para justificar a forma independente, autônoma, e muitas vezes abusiva, com que alguns dos seus vêm agindo, aliado ao fato de que cada vez mais a categoria pretende tomar a frente das investigações criminais, uma alteração da legislação nos moldes aqui propostos passa a se tornar imprescindível.
É certo que no processo penal o Ministério Público desempenha a dupla função de parte supostamente imparcial e de fiscal da lei. É o que se extrai da leitura conjunta dos artigos 129 da Constituição Federal e 257 do Código de Processo Penal, ao disporem, respectivamente, que:
Art.129 - São funções institucionais no Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.
art. 257 do Código de Processo Penal: “O Ministério Público promoverá e fiscalizará a execução da lei”.
Ao menos em tese, portanto, não se deveria mais pensar o Ministério Público dentro do processo penal como um mero órgão acusador, mas sim como um verdadeiro zelador do cumprimento do ordenamento jurídico, imparcial como o juiz e combativo como deve ser o bom advogado, mas sempre com o objetivo maior de obter um julgamento justo e em obediência aos princípios e regras vigentes, seja pugnando pela condenação ou pela absolvição.
Não se pode esquecer, porém, que o membro do Ministério Público, bem como o magistrado e o advogado, são seres humanos; têm seus defeitos; preferências; formas de pensar e agir. Permitir que uma mesma pessoa, por mais bem intencionada que seja, se encarregue dos papéis de atuar na fase preliminar, de colheita de provas, opinando e até requerendo medidas cautelares, para depois acusar, é perigoso em demasia.
A imparcialidade total do juiz não passa de uma falácia quando se tem em mente que ele será a mesma pessoa que atuou numa fase pré-processual, deferiu medidas constritivas das mais variadas, determinou prisões, quebras de sigilos telefônicos, fiscais, bancários, telemáticos etc; e, posteriormente, dará andamento ao futuro processo e ao final julgará o acusado.
Com relação ao membro do Ministério Público, a fantasia é ainda mais evidente, pois a ele cabe, como dito, opinar com relação aos requerimentos das mesmas medidas referenciadas no parágrafo anterior, e até mesmo em alguns casos fazê-las, na medida em que vislumbra a possível existência de crime. Certamente, portanto, existirá uma tendência natural destinada a pugnar pela legalidade das provas que ajudou a produzir e, principalmente, defender a acusação que optou por propor, o que poderá ser atenuado caso um outro colega, alheio à forma como houve produção das provas e ao seu conteúdo, com olhos imparciais, analise os elementos probatórios e, aí sim, decida pelo oferecimento ou não de denúncia.
O perigo foi atentado pela Comissão revisora com relação ao papel do julgador ao criar o tal “Juiz de Garantias”, mas parece ter sido esquecido com relação ao órgão responsável pela propositura da ação penal, pois nada existe no texto nesse sentido.
Mesmo diante de tal omissão, porém, parece certo que se o raciocínio deve ser o mesmo no que tange tanto ao julgador como ao acusador, com maior razão pode-se dizer que se impõe a revisão da inicialmente referida Súmula 234, seja por alteração legislativa caso venha a ser inserida a presente proposta na reforma processual em andamento; seja por força da aplicação por parte do Poder Judiciário da analogia.
De uma ou de outra, o que parece óbvio é que se a um julgador é vedado atuar tanto na fase de colheita de provas como na posterior ação penal, tal proibição deve ser aplicada também ao órgão acusador.
Que venha, portanto, o “Ministério Público de Garantias”. Que venha a real separação entre acusador e fiscal da lei. Que venha o sistema acusatório em sua essência. Que se vá a Súmula 234 do Superior Tribunal de Justiça e seus resquícios inquisitoriais.


Délio Lins e Silva Júnior, Advogado. Conselheiro Seccional eleito para o triênio 2010/2012 na OAB/DF.
Mestre em Ciências Jurídico-Criminais e Especialista em Direito Penal Econômico, ambos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.  Doutorando em Direito Processual Penal pela Universidade de Buenos Aires.

Boletim IBCCRIM nº 207 - Fevereiro / 2010.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog