sexta-feira, 12 de março de 2010

Artigo: A problemática em torno da ação penal nos crimes contra a dignidade sexual (lei 12.015/2009)

Para os crimes contra os costumes (designação utilizada até 2009) praticados até o advento da Lei 12.015/2009, prevalece o entendimento de que a ação penal(1) segue as seguintes diretrizes:
como regra, a ação penal é de iniciativa privada (queixa-crime);
a lesão corporal leve é inerente ao tipo e não altera a natureza da ação penal (ou seja, segue sendo privada);
 será pública incondicionada quando ocorrer o resultado morte ou lesão corporal grave ou gravíssima (Súmula 608 do STF);
a ação será pública condicionada à representação quando a vítima ou seus pais não puderem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família (antiga redação do art. 225 do CP);
será pública incondicionada quando o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador;
sendo a violência presumida, a ação penal é de iniciativa privada, exceto quando ocorrer alguma das situações anteriormente descritas.
Para os crimes contra a dignidade sexual praticados após o advento da Lei 12.015/2009, o cenário é completamente distinto, pois não mais haverá ação penal privada. Com isso, nos termos da nova redação do art. 225 do Código Penal:
1) como regra geral, a ação penal será pública condicionada à representação;
2) a ação penal será pública incondicionada se a vítima for menor de 18 anos;
3) a ação penal será pública incondicionada se a vítima estiver em situação de vulnerabilidade, ou seja, for menor de catorze anos ou alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência;
4) será pública incondicionada quando ocorrer o resultado morte ou lesão corporal grave ou gravíssima (aplicação da Súmula 608 do STF e as regras do crime complexo, art. 101 do CP).
Portanto, a regra agora é que a ação penal seja de iniciativa pública, mas condicionada à representação da vítima ou seu representante legal.
Excepcionalmente, a ação penal será pública incondicionada (vítima menor de 18 anos, em situação de vulnerabilidade ou na situação da Súmula 608 do STF - violência que resulte lesão corporal grave, gravíssima ou morte).
Não há mais hipóteses de cabimento da ação penal de iniciativa privada, exceto a ação penal privada subsidiária da pública, que é uma situação de legitimação extraordinária em caso de inércia do Ministério Público, mas que não transforma a ação penal em privada (ela continua sendo pública e regida por suas respectivas regras e princípios).
Importante esclarecer que a Súmula 608 do STF segue com plena eficácia, com a seguinte redação: “Súmula 608 do STF: No crime de estu­pro, pra­ti­ca­do median­te vio­lên­cia real, a ação penal é públi­ca incon­di­cio­na­da”.
E não poderia ser diferente, pois o estupro com resultado morte ou lesão corporal grave (ou gravíssima) é um crime complexo, sendo neste caso, a ação penal pública incondicionada. Aplica-se nestes casos a regra contida no art. 101 do Código Penal, que determina que a ação penal será pública quando a lei considerar como elementar ou circunstância do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituam crimes de ação penal pública (como o resultado morte ou lesão corporal grave ou gravíssima).
No mesmo sentido, afirmando a aplicação do art. 101 do CP e a permanência da Súmula 608 do STF, esclarece Queiroz(2) que “incide, pois, o art. 101 do Código Penal, porque tanto a lesão grave quanto a morte são condutas que ‘a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo legal fatos que, por si mesmos, constituem crimes’. Exatamente por isso, não fosse a previsão legal expressa das circunstâncias qualificadoras nos §§1° e 2° do art. 213 do Código Penal, o agente responderia, em concurso (formal ou material), por estupro e lesão corporal grave ou estupro e homicídio, por serem infrações autônomas”.
Na mesma linha, Cirino dos Santos(3) explica que a ação penal de ini­cia­ti­va públi­ca pode­rá ser con­si­de­ra­da “exten­si­va” no cha­ma­do crime com­ple­xo, con­for­me prevê o art. 101 do Código Penal: “Art. 101. Quando a lei con­si­de­ra como ele­men­to ou cir­cuns­tân­cias do tipo legal fatos que, por si mes­mos, cons­ti­tuem cri­mes, cabe ação públi­ca em rela­ção àque­le, desde que, em rela­ção a qual­quer des­tes, se deva pro­ce­der por ini­cia­ti­va do Ministério Público”.
Tal situa­ção pode ocor­rer num crime de ação penal de ini­cia­ti­va pri­va­da, com­pos­to de ele­men­tos ou cir­cuns­tân­cias típi­cas que, con­si­de­ra­dos de forma iso­la­da, cons­ti­tuem cri­mes de ação penal de ini­cia­ti­va públi­ca. Como expli­ca o autor, sendo de ação penal de ini­cia­ti­va públi­ca o crime ele­men­tar cons­ti­tu­ti­vo do tipo do crime de ação penal de ini­cia­ti­va pri­va­da, opera-se uma exten­sãoda natu­re­za daque­la ação (de ini­cia­ti­va públi­ca), pas­san­do a, em ter­mos pro­ces­suais ­penais, ser o todo tra­ta­do como de ação penal de ini­cia­ti­va públi­ca.
O mesmo raciocínio se aplica quando o crime for de ação penal de iniciativa pública condicionada à representação e apresentar elementos ou circunstâncias típicas de um delito de ação penal de iniciativa pública incondicionada. Todo ele passará a ser de ação penal de iniciativa pública incondicionada.
Assim, opera-se uma ver­da­dei­ra exten­são da ini­cia­ti­va públi­ca para abran­ger o deli­to ini­cial­men­te con­si­de­ra­do de ação penal de ini­cia­ti­va pri­va­da ou pública condicionada, dian­te do fato de o crime com­ple­xo ser com­pos­to por ele­men­tos ou cir­cuns­tân­cias que, iso­la­da­men­te con­si­de­ra­dos, são de ação penal de ini­cia­ti­va públi­ca incondicionada.
No que se refere à aplicação desta nova lei no tempo, entendemos que:
a) aplica-se o regime legal antigo para os crimes praticados até o dia 07 de agosto de 2009, quando entrou em vigor a Lei 12.015/2009, ainda que o processo venha a iniciar-se em data posterior, pois o regime legal mais severo não retroage (irretroatividade das leis penais e processuais penais que restrinjam direitos fundamentais);
b) os crimes praticados após agosto de 2009 seguem o sistema estabelecido pela Lei 12015/2009 e a nova redação do art. 225 do CP.
Mas um problema irá surgir, como bem identificou Andrade Moreira(4): “e os crimes praticados antes da Lei 12.015/09, cujo processo iniciou através de denúncia, mas sem prévia representação (logo, ação penal pública incondicionada) e que agora passaram a ser considerados de ação penal pública condicionada, como ficam?”.
Estamos diante de um típico caso de lei processual penal mais benigna e que deverá retroagir (retroatividade da lei processual penal que amplie a esfera de proteção constitucional)(5), salvo se já houver trânsito em julgado, devendo o juiz ou tribunal suspender o andamento do processo, notificando a vítima ou representante legal, para que ofereça a representação, sob penal de extinção do processo e da punibilidade pela decadência.
Mas em que prazo?
Como regra, a representação deverá ser feita no prazo de 6 meses (art. 38 do CPP) e, na ausência de qualquer previsão legal específica em sentido diverso, poderia ser seguida essa mesma sistemática.
Contudo, sugerimos outra forma de suprir a lacuna legislativa.
Pensamos(6) que o melhor caminho é a analogia com o art. 91 da Lei 9099/95, que enfrentou exatamente o mesmo problema da seguinte forma: “Art. 91: Nos casos em que esta Lei passa a exigir representação para a propositura da ação penal pública, o ofendido ou seu representante legal será intimado para oferecê-la no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de decadência”.
Isso se justifica na medida em que esta representação feita no processo já em curso, por decorrência de alteração legislativa, tem uma natureza diversa, não mais como condição de procedibilidade, mas sim de prosseguibilidade. Portanto, diante desta nova função, não se justifica a concessão do prazo de 6 meses, na medida em que o processo já está em curso e apenas necessita de uma autorização da vítima para que o Ministério Público possa prosseguir (e não uma autorização para que o Estado possa proceder) com o exercício da pretensão acusatória.
Ademais, diante do direito de ser julgado em um prazo razoável (art. 5º, LXXVIII da Constituição), não nos parece razoável suspender o processo (que já está em curso, recordemos) por até 6 meses para aguardar a manifestação da vítima.
Outra questão problemática é em relação à forma da representação.
Prevalece o entendimento de que a representação não tem forma rígida, podendo ser aceita com tal, qualquer manifestação de vontade da vítima no sentido de que o Estado proceda contra alguém. Não há rigidez na forma, portanto, admitindo-se até mesmo que a notícia-crime feita pela vítima supra a condição específica da ação.
Qual a relevância disso em relação à nova redação do art. 225 do CP?
Os crimes anteriormente considerados de ação penal pública incondicionada e que passaram a exigir representação, conduzirão a discussão da aplicação desta sistemática no tempo. Como explicado, pensamos que os processos que estejam nesta situação deverão ser suspensos, notificando-se a vítima para que represente no prazo fixado (ou seja, a problemática em torno do prazo de 6 meses ou 30 dias, como preferimos).
Inobstante, surgirão vozes sustentando que se a representação não tem forma rígida e, portanto, estará suprida pela notícia-crime e até mesmo pelo eventual depoimento da vítima em juízo, onde manifestou sua vontade de que o fato fosse apurado e o réu punido.
Mas, antecipando-nos a essa posição, sublinhamos seu equívoco, pois é uma forma de recusa ao novopara que a situação continue igual.
Não se pode igualar o tratamento da representação - que tem natureza jurídica de condição de procedibilidade (necessária para que o Ministério Público possa proceder contra alguém) - com a condição de prosseguibilidade (quando há alteração legislativa que passa a exigir a representação nos processos em curso). Neste segundo caso, que nos interessa agora, a representação não pode ser suprida pelas manifestações anteriores da vítima, pois não se trata de autorizar genericamente a investigação e persecução estatal (como na representação tradicional), senão de – no caso concreto – permitir que o Estado prossiga com um processo já existente.
Há uma nova situação que deve ser ponderada, cabendo à vítima decidir se – conforme sua conveniência – deseja autorizar a continuidade do processo ou não. Necessariamente ela deve ser ouvida, pois se, por qualquer motivo, não tiver interesse na continuidade do processo, deverá ter o poder de extingui-lo. É completamente diferente a representação tradicional, que constitui uma autorização genérica para o Estado proceder, com a condição de prosseguibilidade, em que já existe um fato processual determinado e um réu definido.
Portanto, pensamos que é imprescindível uma nova manifestação da vítima, pois a situação jurídico-processual é completamente distinta, não suprindo as genéricas manifestações anteriores.
Dessarte, destacando que não existe até o momento uma posição jurisprudencial consolidada, opinamos pela aplicação analógica do art. 91 da Lei 9099/95 para a concessão do prazo de 30 dias para que a vítima satisfaça a condição de prosseguibilidade, sob pena de não o fazendo, ser extinta a punibilidade pela decadência, não suprindo as manifestações anteriores.

NOTAS

(1)  Para aprofundamento das questões aqui tratadas, sugerimos a leitura de nossa obra “Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional”, volumes 1 e 2, publicada pela editora Lumen Juris.
(2)  QUEIROZ, Paulo. Ação Penal no atual Crime de Estupro. Disponível no site www.pauloqueiroz.net em 17/09/2009.
(3)  CIRI­NO DOS SAN­TOS, Juarez. Direito Penal – Parte Geral, pp. 665 e ss.
(4)  ANDRADE MOREIRA, Rômulo. Ação Penal nos Crimes Contra a Liberdade Sexual e nos Delitos Sexuais contra Vulnerável – A Lei nº 12.015/09. Disponível nos sites www.jusnavigandi.com.br , www.jusvigilantibus.com.br e www.juspodivm.com.br em 26 de agosto de 2009.
(5)  Sustentamos, na mesma linha de Paulo QueirozAntonio Vieira ( Boletim  do IBCCRIM n. 143),  a retroatividade da lei processual penal que amplie a esfera de proteção de direitos fundamentais, diante da  necessária conformidade constitucional da  clássica teoria da imediatidade (sobre o tema consulte-se nossa obra Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, volume 1).
(6)  No mesmo sentido, Rômulo Andrade Moreira, no artigo anteriormente citado.


Aury Lopes Jr. Advogado criminalista. Doutor em Direito Processual Penal. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS.


 Boletim IBCCRIM nº 207 - Fevereiro / 2010.

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