sexta-feira, 12 de março de 2010

Artigo: Produção da prova testemunhal e interrogatório: correlações necessárias

“Triste época. É mais fácil desintegrar um átomo que um preconceito”.
Albert Einstein
As alterações havidas no sistema processual penal, no que se refere à colheita da prova testemunhal e ao interrogatório, provocaram importante mudança de paradigma em nosso sistema que não foram ainda adequadamente compreendidas em toda a sua extensão. Neste artigo, pretende-se analisar algumas providências necessárias para que se possa adequadamente cumprir o quanto pretendido pelo legislador, especialmente no que se refere à colheita da prova testemunhal em relação ao interrogatório.
O interrogatório é meio de defesa e é importante que se note esta sua natureza jurídica para que, adequadamente, possa-se entender como esta concepção altera a forma de produção da prova testemunhal(1) e do próprio interrogatório.
Admitir que o interrogatório é meio de defesa tem por implicação necessária reconhecer que o acusado, quando da realização do ato do interrogatório, deve ter plena e prévia ciência do material probatório existente nos autos contra ele. Só assim poderá prestar seu depoimento com o sentido que a promessa constitucional da ampla defesa exige. Esta é a posição sustentada neste texto e daí se retirarão importantes e pragmáticas consequências.
O acusado é sujeito de direitos no sentido apresentado por Luigi Ferrajoli: “‘Soggeto giuridico’ è chiunque sia centro d’imputazione di atti o di sittuazioni giuridiche’”(2). Por ser sujeito de direitos, é titular de situação jurídica ativa(3) e pretende-se analisar abaixo estas posições sob a ótica da ampla defesa, da prova testemunhal e do interrogatório.
A ampla defesa possui dupla manifestação: autodefesa e defesa técnica. Na vertente da auto defesa que ora interessa, tem-se que o acusado tem direito ao conhecimento de todo o material probatório que é produzido contra ele, daí o porquê se falar que a autodefesa possui dois aspectos, o direito de audiência e o direito de presença. Quanto a este último aspecto, esclarecem Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes: “O segundo [direito de presença] manifesta-se pela oportunidade de tomar ele posição, a todo momento, perante as alegações e as provas produzidas, pela ime­diação com o juiz, as razões e as provas”(4).
Neste sentido destaca-se a manifestação de Julio Maier: “... el derecho de defensa Del imputado comprende la facultad de intervenir em el procedimiento penal abierto para decidir acerca de uma posible reacción penal contra el y la de levar a cabo em el todas las actividades necesarias para poner en evidencia la falta de fundamento de la potestad penal Del Estado o cualquier circunstancia que la excluya o atenue...”(5).
Da mesma forma esclarece Stefan Seiler que este conhecimento é necessário e integra a chamada defesa necessária: “Zu seiner Verteidigung darf der Beschuldigte auch behaupten, dass Zeugen, die ihn belasten, lügen, und ihnen damit wider besseres Wissen eine falsche Beweisaussage vorwerfen, denn dies geschieht im Rahmen notwendiger Verteidigung”(6).
É importante que se tenha em vista que o interrogatório do acusado somente pode se dar quando a ele acusado é dado o pleno conhecimento da causa e isso não significa dar conhecimento tão somente da acusação mas, também, do material probatório que é produzido contra ele.
Trata-se de direito fundamental do acusado o conhecimento do material probatório contra ele produzido em audiência ou mesmo fora dela (no caso de testemunha de acusação ouvida por carta precatória, por exemplo) que não pode ser ignorado a pretexto de realização do ato de maneira mais rápida ou algum outro argumento meramente retórico.
Interrogatório e retirada do réu da sala de audiências 
O artigo 217 do Código de Processo Penal permite, em situações extraordinárias, que se retire o réu da sala de audiências caso não seja possível a tomada do depoimento das testemunhas por videoconferência. A maioria dos fóruns do País certamente vive esta situação: dada a ausência de material para a videoconferência, realiza-se a tomada de depoimentos na ausência do réu.
Contudo, para que se possa adequadamente ser realizado o interrogatório (tido, insista-se, como meio de defesa), deve o réu ter acesso ao conteúdo dos depoimentos das testemunhas que depuseram na sua ausência.
Vale dizer, deve o magistrado franquear o acesso aos termos de depoimento das testemunhas para que, apenas então, o acusado possa ser interrogado. Caso este procedimento não seja efetivado e o interrogatório se dê sem o conhecimento do material probatório produzido sem a presença do acusado, não se terá o interrogatório como meio de defesa, desnaturando-se sua natureza jurídica.
Não se pode aceitar mais passivamente a distinção tão comum em alguns meios entre o discurso dos direitos fundamentais e sua práxis. De nada adianta que sejam escritas páginas e páginas de tratados científicos assegurando-se o interrogatório como meio de defesa, se não se permite ao acusado a simples providência de ter acesso ao material probatório que foi produzido contra ele na sua ausência.
Para que o acusado possa ser adequadamente interrogado e fazer valer este ato como meio de defesa, deve ter acesso aos depoimentos das testemunhas que contra ele depuseram na sua ausência.
Interrogatório do acusado colhido por carta precatória
Na situação anterior discutiu-se a hipótese em que o acusado é retirado da sala de au­diências para a colheita da prova oral. Agora se pretende a discussão de segundo aspecto: não raras vezes o interrogatório do acusado é colhido por meio de carta precatória, de forma a cindir a audiência de instrução, debates e julgamento.
Ora, esta hipótese não se distingue substancialmente da anterior. Também não se pode ter o interrogatório como verdadeiro meio de defesa se a precatória não for instruída com cópias dos depoimentos da testemunhas que foram ouvidas.
Vale dizer, para que o interrogatório possa efetivamente constituir-se como meio de defesa, também aquele que é ouvido em comarca distinta daquela em que o processo tramita deve ter o direito de ter acesso ao conteúdo probatório das testemunhas que foram ouvidas perante o juízo da causa.
Este material probatório deve ser disponibilizado pelo próprio juízo deprecante, pouco importando tratar-se de acusado com defensor dativo ou con­s­tituído, uma vez que não há distinção legal para a incidência do princípio da ampla defesa nesta situação.
Da mesma forma, antes da audiência para oitiva do acusado o magistrado deve permitir que ele tenha efetivo acesso a este material. Não se pode descurar que muitos dos acusados são defendidos por defesa dativa que, nestes casos, não costuma ter efetivo contato com o acusado.
Assim, para que se possa dar concretude à promessa constitucional da ampla defesa, o magistrado deve efetivamente dar ciência ao acusado do conteúdo da prova testemunhal colhida contra ele antes do início de seu interrogatório(7).
Conclusão
Um sistema processual não pode conviver com a dualidade do discurso da garantia dos direitos fundamentais e com a práxis cega que não assegura ao acusado os mínimos procedimentos decorrentes destes direitos.
É preciso que se supere a fase do discurso pelos direitos fundamentais em direção à prática destes direitos fundamentais.
Permitir que o acusado tenha acesso ao conteúdo probatório da prova oral que contra ele foi colhida antes de seu interrogatório significa passar-se do discurso do interrogatório como meio de defesa para a prática do interrogatório como meio de defesa. Só então preconceitos poderão ser quebrados mais facilmente do que átomos. Trata-se de medida simples que, ao mesmo tempo, permite dar concretude ao princípio constitucional da ampla defesa.
Bibliografia
FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris. Teoria del diritto e della democra­zia, vol. 3. La sintassi del diritto. Roma: Editori Laterza, 2007
GRINOVER, Ada Pellegrini, GOMES FILHO, Antonio Magalhães, SCARANCE FERNANDES, Antonio. As nulidades no processo penal. 11ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009
MAIER, Julio B. J. Derecho Procesal Penal, I, Fundamentos. 2ª ed. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004
SEILER, Stefan. Strafprozessrecht. 9 ed. Wien: Facultas.wuv, 2008

 NOTAS

(1)  Acompanhamos a posição daqueles que vêem no interrogatório meio de defesa mesmo antes da modificação de sua posição no procedimento. Não é porque houve modificação da posição de um ato no procedimento que sua natureza jurídica foi alterada. Aliás, para aqueles que assim entendem, ficaria difícil sustentar que o interrogatório no processo penal era meio de prova e no Juizado Especial Criminal meio de defesa, visto que nesta lei especial já era o último ato do procedimento antes dos debates e da sentença. Também é a posição do STF conforme se depreende do HC 94.016 que tem por relator o min. Celso de Mello e julgado em 16.09.08.
(2)  FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris. Teoria del diritto e della democrazia. , vol.3. La sintassi del diritto. Roma: Editori Laterza, 2007, p. 228.
(3)  Novamente aqui tem-se a lição de Ferrajoli no sentido de que “I soggetti giuridici titolari di dirittti soggettivi positivi o negativi sono sempre in raporto giuridico com i soggetti giuridici imputati delle garanzie primarie consistenti nei doveri positivi o negativi corrispondenti ai diritti garantiti” (T10.209, in op cit p. 641).
(4)  GRINOVER, Ada Pellegrini, GOMES FILHO, Antonio Magalhães, SCARANCE FERNANDES, Antonio. As nulidades no processo penal. 11ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 73.
(5)  MAIER, Julio B. J. Derecho Procesal Penal, I, Fundamentos. 2ª ed. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004, p. 547.
(6)  SEILER, Stefan. Strafprozessrecht. 9 ed. Wien: Facultas.wuv, 2008, p. 68. Em tradução livre: Em sua defesa o acusado poderá afirmar que as testemunhas que o acusam mentiram e acusá-las de declaração falsa, e isso se dá no contexto da defesa necessária.
(7)  Não se pode esquecer, neste aspecto, que a função judiciária é também uma função de garantia como bem afirma Ferrajoli em seu teorema 12.52: “La funzione giudiziaria è una funzione di garanzia”, in op cit p. 811 e que a jurisdição é a atuação da função de garantia que é a função judiciária (teorema 12.55, p. 813). Da mesma forma, deve-se ter em conta que, para Ferrajoli, “La giurisdizione è La attuazione della garanzia secondaria dell’annullabilità degli atti invalidi o della responsabilità per gli atti illeciti” (teorema T12.58, in op cit p. 815).

Guilherme Madeira Dezem, Mestre em Processo Penal pela Universidade de São Paulo e doutorando pela mesma instituição.  Professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e de pós-graduação. Juiz de Direito em São Paulo.

Boletim IBCCRIM nº 207 - Fevereiro / 2010.

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