domingo, 7 de março de 2010

Artigo: Sobre a condenação sem julgamento prevista no pls 156/09

A ameaça de sanção inerente a todo processo acusatório é, queiram ou não os defensores da transação, um elemento de coação que desequilibra a posição jurídica dos contratantes e tende a ser tomado como limitador do consenso como livre manifestação da vontade”.
Geraldo Prado



Atualmente tramita no âmbito do Senado Federal o PLS 156/09, que almeja reforma global do Estatuto Processual Penal ora em vigor.
Esse projeto foi engendrado por Comissão de Juristas presidida pelo ministro Hamilton Carvalhido(1), nomeada pela Presidência do Senado Federal a pedido do senador Renato Casagrande (Requerimento nº. 227/08).
Como é cediço, o Estatuto Processual Penal em vigor – cujo código genético é 100% ditatorial, mezzo fascista, mezzo varguista, portanto de cariz nitidamente inquisitivo – assumidamente trata as garantias do acusado como formalismos estéreis, a exigir pronto sacrifício no altar da eficiência da persecução penal.
Deve, portanto, ser saudada essa iniciativa de reforma integral da nossa codificação processual penal, ante a imperiosa necessidade de adaptá-la aos valores hauridos do novo regime constitucional democrático e do sistema internacional de tutela dos Direitos Humanos.
Estes últimos são manifestamente incompatíveis com a pauta político-criminal autoritária que inspirou o Código de Processo Penal de 1941, pois têm sua fundamentação axiológica noprincípio nuclear da dignidade da pessoa humana (CR, art. 1º, III), o qual proporciona unidade de sentido ao nosso ordenamento jurídico-constitucional.
Mercê da inquestionável qualificação jurídica de seus artífices, o PLS 156/09 contém diversos e inegáveis avanços, dos quais são eloquentes exemplos o Título I do Livro I, contendo todos os princípios estruturaisque dão harmonia, coerência e unidade sistêmica ao novo Código (artigos 1º a 7º); as diversas medidas cautelares pessoais alternativas ao encarceramento do acusado (artigos 575 a 596) etc.
Não obstante, há aspecto do PLS 156/09 que desperta considerável preocupação: o chamado procedimento sumário(2).
Trata-se do rito aplicável a todas as infrações penais de maior potencial ofensivo cuja pena máxima não exceda 8 (oito) anos, excetuadas aquelas submetidas aos ritos especiais do Tribunal do Júri e da ação penal de competência originária dos Tribunais (artigo 257, § 1º, II e § 2º do PLS 156/09).
Segundo o rito em análise, até o início da audiência de instrução e julgamento as partes processuais podem “consensualmente” requerer ao juízo a aplicação imediata de pena, desde que: (i) haja confissão total ou parcial dos fatos; (ii) a pena seja imediatamente aplicada no seu patamar mínimo legal.
Caso não haja tal “consenso” entre as partes processuais, o procedimento prosseguirá nos termos do rito comum ordinário (artigos 271 e 272 do PLS 156/09(3)).
Na verdade, o instituto processual penal em exame é muito mais do que simples procedimento – na tradicional acepção técnico-processual deconjunto de atos processuais sucessivos e coordenados, unidos por vínculo teleológico (normalmente viabilizar provimento jurisdicional de mérito).
procedimento sumário previsto no PLS 156/09, a rigor, se consubstancia em instituto inédito no Brasil, pois permite às partes processuais “consensualmente” disporem sobre o próprio processo criminal, ensejando aplicação imediata de pena privativa de liberdade, sem necessidade de dilação probatória e comprovação empírica da culpabilidade do acusado.
Para tanto basta haver, além do sobredito “consenso”, imputação de infração penal que comporte o rito sumário, confissão e aplicação imediata da pena no patamar mínimo legal.
Interpretação lógico-sistemática do texto do Projeto revela que tal confissão sequer precisa ser judicial, pois o “consenso” entre as partes processuais precisa ocorrer até o início da audiência de instrução e julgamento, portanto antes do interrogatório do acusado em juízo (artigos 265, in fine e 271 do PLS 156/09).
Trata-se de instituto que guarda notável similaridade com a plea bargainanglo-americana(4), a qual parece ter sido a grande inspiração legislativa daquele.
Em apertada síntese, a plea bargain se caracteriza pela negociação entre as partes processuais, com vistas à aplicação sumária da pena, com dispensa do julgamento. Tal transação envolve as seguintes concessões recíprocas: autoincriminação e renúncia ao julgamento por parte do acusado, em troca de tratamento penal mais favorável. Este último pode ser na modalidade da charge bargain, que enseja a exclusão de determinado crime da imputação ou a desclassificação do delito imputado; ou sentence bargain, que acarreta recomendação do acusador ao juiz, no sentido da redução da pena a ser aplicada(5).
Ao contrário do que se imagina, a plea bargain não é uma tradição secular do processo penal anglo-americano e tampouco é aceita de forma pacífica pelos juristas de língua inglesa.
O processo penal da common law originalmente desconhecia a plea bargain, repudiando acordos dessa natureza no século XVIII(6). Somente a partir do século XX aparecem registros históricos de frequentes plea bargains, simulta neamente a significativo aumento tanto do volume de causas criminais submetidas à justiça criminal norte-americana quanto da complexidade e morosidade do julgamento pelo Tribunal do Júri estadunidense(7).
Ao que tudo indica, a plea bargain – por permitir a aplicação sumária da pena, com dispensa do julgamento – atendeu a interesses político-criminais de cariz econômico e utilitarista, adaptando os limitados recursos do sistema de administração da justiça criminal a crescente fluxo de causas criminais, cujo julgamento perante o Tribunal do Júri era cada vez mais complexo e moroso.
Entretanto, o instituto jurídico em digressão vem sofrendo inúmeras e candentes críticas doutrinárias(8):
A uma, ele esvaziou a força normativa do direito fundamental ao julgamento perante o Tribunal do Júri, previsto na Sexta Emenda à Carta Magna norte-americana. Hoje se estima que mais de 90% das causas criminais não vão a julgamento pelo Tribunal do Júri nos Estados Unidos da América, sendo decididas através de plea bargains.
A duas, na prática judiciária ele tem por objetivo, em última análise, coagiro acusado a se autoincriminar renunciar ao julgamento perante o Tribunal do Júri, pela ameaça, explícita ou velada, de aplicação de sanção penal mais gravosa ao final do julgamento.
Assim sendo, ele também sevicia mortalmente o núcleo essencial da garantia da paridade de armas, ao hipertrofiar os poderes do acusador: este último, na prática, substitui juiz e jurados, concentrando os poderes de formular a acusação, julgar a causa e fixar a pena. Em consequência, são comuns nos EUA acusações artificialmente inflacionadas para uso como moeda de troca e aumento da pressão psicológica sobre o acusado, tudo com vistas a uma futura plea bargain mais vantajosa para o acusador (overcharging).
A possibilidade de verdadeiro consenso entre acusador e acusado pressupõe: (i) igualdade substancial entre as partes processuais penais;(ii) capacidade de autodeterminação e livre manifestação da vontade do acusado(9), nenhuma das quais presente na plea bargain – a qual, como já visto, funciona com base na coação do acusado.
A três, ele suprime a publicidade do julgamento criminal, em favor de um procedimento de negociatas secretas entre as partes processuais, inviabilizando assim o controle popular sobre o sistema de administração da justiça criminal.
Por conseguinte, a plea bargain compromete a percepção da sociedade acerca da necessária dimensão ética e transparente do processo penal, enquanto instrumento de resolução de conflitos de interesses sociais relevantes.
A quatro, ele favorece decisões penais baseadas – em vez do critério da demonstração empírica da culpabilidade do acusado durante o julgamento – no critério do maior grau de conveniência pessoal proporcionado aos diversos operadores jurídicos: a plea bargain, pelo seu caráter sumário, consome substancialmente menos esforços pessoais e tempo do que o julgamento do mérito da causa.
É lícito supor que esta última característica pode encontrar solo propício nestes trópicos, já fertilizado por caldo de cultura jurídico luso-romano cartorial e burocrático, além de sistema penal cuja clientela preferencial é sabidamente carecedora de assistência jurídica adequada. É real o risco de haver grande aceitação das indiscutíveis comodidades pessoais oferecidas pela plea bargain, vindo esta a gradualmente substituir o próprio julgamento, que se tornará excepcional.
É certo que inúmeras outras objeções poderiam ser opostas ao procedimento sumário regulamentado nos artigos 271 e 272 do PLS 156/09, com fundamento no caráter irrenunciável da cláusula do devido processo penal (nulla poena sine judicio) e seus corolários lógicos, no princípio da indisponibilidade da ação penal condenatória de iniciativa pública etc.
Nosso modesto objetivo, entretanto, foi tão só o de tentar demonstrar que as origens históricas e as insofismáveis mazelas do instituto da plea bargain não devem ser desconhecidas nem desprezadas na reforma do Código de Processo Penal brasileiro.

NOTAS

(1) Os demais integrantes dessa Comissão foram: Antonio Correa,Antonio Magalhães Gomes FilhoEugênio Pacelli OliveiraFabiano Augusto Martins SilveiraFelix Valois Coelho JúniorJacinto Nelson de Miranda CoutinhoSandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral.
(2) Nesse sentido, ver carta aberta encaminhada por diversas entidades (Associação Juízes para a Democracia, Associação Nacional dos Defensores Públicos, Associação Paulista de Defensores Públicos, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Instituto de Defesa do Direito de Defesa) ao senador Demóstenes Torres, da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. Disponível em: . Acesso em 16.01.2010.
(3) “Art. 271. Até o início da instrução e da audiência a que se refere o art. 265, cumpridas as disposições do rito ordinário, o Ministério Público e o acusado, por seu defensor, poderão requerer a aplicação imediata de pena nos crimes cuja sanção máxima cominada não ultrapasse 8 (oito) anos, desde que:
I – haja confissão, total ou parcial, em relação aos fatos imputados na peça acusatória;
II – a pena seja aplicada no mínimo previsto na cominação legal;
(omissis)
Art. 272. Não havendo acordo entre acusação e defesa, o processo prosseguirá na forma do rito ordinário”.
(4) MUSSO, Rosanna GambiniIl “plea bargaining” tra common law e civil law. Milano: Giuffrè, 1985.
(5) Nos termos do artigo 11 das Federal Rules of Criminal Procedure norte-americanas.
(6) “Virtually every prisoner charged with a felony insisted on taking his trial, with the obvious support and encouragement of the court. There was no plea bargaining in felony cases in the eighteenth century” (BEATTIE, J. M. Crime and the courts in England (1660-1800), p. 336-337. Princeton: Princeton University Press, 1986). No mesmo sentido: LANGBEIN, JohnThe origins of adversary criminal trial, p. 18-20. New York: Oxford University Press, 2003.
(7) ALSCHULER, Albert. Plea bargaining and its history, In: Law & Society Review, Amherst, n. 13, p. 211-245, 1978-1979.
(8) ALSCHULER, Albert. Implementing the criminal defendant’s right to trial: Alternatives to the plea bargaining system, InUniversity of Chicago Law Review, Chicago, n. 50, p. 931-1.050, 1983; LANGBEIN, John. On the myth of written constitutions: The disappearance of criminal jury trial, In:Harvard Journal of Law and Public Policy, Cambridge, n. 15, p. 119-128, 1992;LANGBEIN, John. Torture and plea bargaining, InUniversity of Chicago Law Review, Chicago, n. 46, p. 03-22, 1978-1979.
(9) PRADO, Geraldo. Elementos para uma análise crítica da transação penal, p. 173 e ss. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.


Diogo Malan, Advogado. Doutor em Processo Penal pela USP. Professor adjunto de Processo Penal da PUC-Rio e da UCP.v


Boletim IBCCRIM nº 207 - Fevereiro / 2010

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog