sábado, 3 de abril de 2010

Artigo: Delitos de acumulação e racionalidade da intervenção penal

What if everybody did it? Por meio dessa indagação, Joel Feinberg buscava em 1984 analisar um grupo específico de casos caracterizados pela prática de condutas que, embora fossem individualmente inofensivas ao bem jurídico tutelado pela norma penal, revelavam-se particularmente perigosas ou danosas, quando tomadas a partir da consideração hipotética de sua repetição em grande número(1). Assim, a título ilustrativo, tratando do crime de poluição ou dos crimes contra a ordem tributária, ter-se-ia o comportamento do agente que descarta no meio ambiente ínfima quantidade de lixo, ou o de quem deixa de recolher ao Erário Público tributo em quantia inferior ao mínimo exigível para justificar sua cobrança administrativa como hipóteses que, sob a lógica da cumulatividade no âmbito social, ganhariam significação jurídica, justificando a intervenção penal.
A denominação “delitos de acumulação” (Kumulationdelikt) foi empregada pela primeira vez por Lothar Kuhlen, em 1986, ao tratar da matéria ambiental, para designar no âmbito dos delitos de perigo abstrato as condutas que se tornam penalmente significativas não por si mesmas, e sim porque, sem uma proibição sancionatória, seriam realizadas em tal quantidade que levariam à ofensa ao bem jurídico protegido pela norma(2). A tipificação de delitos de acumulação prestaria, conforme Kuhlen, uma contribuição à solução de problemas de especial transcendência às condições naturais de vida, por meio da punição das condutas responsáveis por sua constituição.
Mais de duas décadas após a reflexão inicial sobre os delitos por acumulação, a discussão ganha contornos ainda mais acentuados em decorrência da complexidade da sociedade contemporânea. A proteção de bens jurídico-penais enfrenta novas dificuldades, em razão de se pretender abarcar não apenas sua colocação em perigo atual, como também processos lesivos a longo prazo, aptos inclusive a atingir futuras gerações. Assim, condutas antes consideradas inofensivas convertem-se em altamente perigosas como resultado da acumulação. Questiona-se, então, a legitimidade do Direito Penal para intervir nessas hipóteses, conferindo uma proteção diacrônica que inclua a garantia de condições dignas às próximas gerações.
Essas novas preocupações enfrentadas pelo Direito Penal advêm não apenas dos desdobramentos da denominada de sociedade do risco, como também, e consequentemente, do fenômeno de “erosão das normas sociais”, relacionado no âmbito da sociologia jurídica alemã com a constatação da diminuição de padrões normativos específicos individuais, bem como daqueles correspondentes à própria estruturação do cotidiano, tornando a sociedade contemporânea menos confiável sob o ponto de vista de suas expectativas normativas(3). Tal fenômeno implica a crescente demanda para que o Estado assuma a proteção penal das normas debilitadas, levando inúmeras dificuldades.
Por isso, embora os princípios penais fundamentais ainda sigam dominando a doutrina, surgem na legislação elementos que contradizem a concepção liberal e levam o Direito Penal ao caminho do endurecimento e a eleger como centro de suas preocupações a vítima real ou potencial do delito. O paradigma penal dominante na atualidade parece ser o da efetividade na produção de segurança, passando-se da prevenção ao questionável princípio da precaução em defesa da sociedade contra ameaças potenciais advindas de âmbitos pouco conhecidos ou controláveis sob a perspectiva dos riscos envolvidos. Nessa linha, o princípio da ofensividade adquire um caráter ambivalente: se, sob a ótica liberal do Direito Penal, a exigência de ofensa ao bem jurídico supunha a oposição à criminalização de determinadas condutas, tendo como consequência principal uma tendência crítica de despenalização, nos últimos anos passou-se a adotar o mesmo princípio para justificar um Direito Penal criminalizante. Da mesma forma, o Direito Penal passa a ser visto como um instrumento de controle administrativizado, voltando-se à gestão de determinados setores da atividade social(4). É nesse contexto que se há de discutir os denominados delitos por acumulação.
Antes de tudo, devem-se analisar os próprios limites que separam o delito do mero ilícito administrativo. As teses clássicas, como a adotada por Goldschmidt, distinguiam os limites de intervenção do Direito Penal daqueles do Direito Administrativo a partir de uma perspectiva ética. Assim, enquanto o delito consistia em uma lesão eticamente reprovável a um bem jurídico, o ilícito administrativo correspondia a um ato de desobediência ético-valorativamente neutro(5). Mais tarde, consolidou-se a concepção segundo a qual a diferença entre ilícito penal e ilícito administrativo seria quantitativa, caracterizando-se esse último pelo menor conteúdo de injusto. Nesse sentido, sendo a sanção administrativa de menor gravidade do que a sanção penal, a separação entre um e outro âmbitos atenderia apenas a um critério de conveniência ou de oportunidade, conforme o interesse do Estado em dado momento histórico(6).
Embora ambas as concepções ainda sejam equivocadamente empregadas, nenhuma delas se mostra correta, já que a diferença fundamental entre o delito e o mero ilícito administrativo reside no critério teleológico, isto é, nas diversas finalidades perseguidas pelo Direito Penal e pelo Direito Administrativo. Dessa forma, se o Direito Penal busca a proteção de bens jurídico-penais em casos concretos, a partir dos critérios de ofensividade e de culpabilidade, o Direito Administrativo visa a organizar determinados setores de atividade, reforçando, a partir do critério de oportunidade, determinado modelo de gestão. Por isso a sanção administrativa não necessita atingir condutas especificamente ofensivas a bens jurídicos, bastando que em geral representem estatisticamente um perigo para a ordenação de determinado setor de atividade. É sob essa perspectiva de gestão administrativa que a pergunta “what if everybody did it?” adquire sentido(7). O equívoco da administrativização da intervenção penal decorre, então, da pretensão de diferenciação meramente ontológica ou quantitativa entre Direito Administrativo e Direito Penal, levando à incriminação de condutas que não atingem bens jurídico-penais.
É justamente o que ocorre com os delitos de acumulação, cuja punição não atinge comportamentos concretamente ofensivos, buscando-se, ao invés, proteger a eficiência social de determinadas funções por meio do Direito Penal, o que soa ilegítimo em face dos princípios da ofensividade e da culpabilidade. Com efeito, se, no âmbito dos delitos cumulativos, a imputação do fato ao agente depende não de sua própria conduta, por si inofensiva, e sim de contribuições alheias, a reprovação penal está a infringir abertamente os limites de um Direito Penal garantista, que atribui responsabilidade pela criação pessoal de riscos penalmente relevantes(8).
A despeito das dificuldades expostas, há autores que defendem a admissão, ainda que limitada ou excepcional, da tutela penal dos danos cumulativos. Assim, Jesús-María Silva Sánchez, embora valore negativamente os delitos de acumulação, considerando-os lesivos os princípios da culpabilidade e da proporcionalidade das penas, propõe sua admissão, por razões comunicativas, desde que a eles sejam cominadas penas outras que não a privativa de liberdade, no contexto de um Direito Penal de fronteira ou de segunda velocidade(9).
Jorge de Figueiredo Dias afirma, por sua vez, que, em face da necessidade coletiva de contenção de “mega-riscos globais”, revela-se legítima a punição da conduta do agente quando a esta seja não só possível, e sim muito provável somar outras tantas, de forma a gerar perigo de dano ao bem jurídico tutelado, bastando para isso a constatação empírica da provável acumulação e de seus efeitos negativos. Nessa medida, o autor aproxima-se da ideia de Stratenwerth de um Direito Penal do comportamento, em que são punidas meras relações de vida como tais, o que, conforme Jorge de Figueiredo Dias, não se trataria de uma alternativa ao Direito Penal do bem jurídico, haja vista que a punição imediata de comportamentos visaria mediatamente à tutela de bens jurídicos coletivos(10).
Seguindo a mesma linha ao tratar dos efeitos cumulativos em matéria ambiental, Klaus Tiedmann adverte que os perigos oriundos da emissão de gases diversos não podem ser compreendidos em concreto pelo cidadão nem sequer de forma aproximada. Desse modo, o discurso sobre uma simples desobediência à administração não dever ser sancionada pelo Direito Penal careceria de legitimidade, em razão dos medos elementares envolvidos(11).
No Brasil, Fabio Roberto D’avila propõe a possibilidade de análise da relevância jurídico-penal da conduta de acumulação do agente mesmo fora do fato em si, a partir do contexto no qual se desenvolve, apesar de advertir que a admissão dessa concepção de delito leva ao reconhecimento da absoluta ausência de ofensividade. Assim, defendendo uma posição semelhante à atual concepção de Lothar Kuhlen, o autor trata da hipótese ilustrativa do crime de poluição e sustenta, na análise da relevância da cumulatividade, que quanto maior o grau de poluição de uma área, menor deverá ser o nível de poluição tolerado pela lei, numa relação de dependência que encontra o seu ideal na maior proximidade possível com o contexto real. Toma-se o delito de acumulação não mais sob uma hipótese de repetição ou a partir de uma lógica de prevenção geral, e sim como elemento real inserido, no exemplo dado, quer na aferição do grau de poluição já existente em uma determinada área, quer nos índices variáveis de emissão de poluentes(12).
Da mesma forma, Pierpaolo Cruz Bottini não nega a possibilidade de tipificação de condutas de acumulação para a contenção de riscos em determinados contextos, quando estiver presente a periculosidade da conduta e, especialmente, quando a repetição da atividade é perpetrada pelo mesmo agente. E o autor conclui que a legitimidade dos delitos de acumulação não é uma discussão sobre a legislação penal, e sim sobre a aplicação concreta das normas, na medida em que ao juiz incumbe a verificação da tipicidade do comportamento nestes casos, não a admitindo quando o contexto de risco é criado por um conjunto de agentes sem prévia combinação, e cada conduta isolada não apresenta a materialidade necessária para permitir a incidência da norma penal(13).
Em vista das diversas perspectivas apresentadas, faz-se necessário chamar a atenção para a necessidade de retorno a um Direito Penal racional. Antes de mais nada, a opção tímida de admitir os delitos por acumulação dentro de um Direito Penal brando e flexibilizado implica uma intolerável quebra sistêmica (conforme as inúmeras críticas já lançadas ao “Direito Penal de segunda velocidade” de Silva Sánchez), e evidencia a própria convicção de que os danos cumulativos não devem ser tutelados no âmbito penal.
De outro lado, a adoção de um Direito Penal do comportamento, baseado nos medos sociais e no princípio da precaução, ainda que se advogue a tutela indireta de bens jurídicos supraindividuais, leva ao retrocesso da intervenção penal ao período pré-iluminista, não sendo difícil também a aproximação desse modelo ao relativismo axiológico que deu margem à adoção de sistemas autoritários a exemplo da escola de Kiel. O delito deve ser um comportamento socialmente danoso. A exigência do requisito básico da ofensividade, alcançado na época da Ilustração, tem raízes históricas mais profundas do que a própria Constituição atual e é imprescindível para a argumentação teleológica no campo do ilícito penal, de forma que renunciar a esse princípio significaria renunciar ao próprio Estado Democrático de Direito e permitir, já num âmbito autoritário, a punição da mera vontade ou da periculosidade(14). E de nada adianta pretender buscar a ofensividade fora da esfera de comportamento do agente, relacionando-a com situações concretas onde já há exposição do bem jurídico a dano. Nesses casos, parece que o efeito do entorno sobre a significação penal da conduta do agente é justamente o contrário (imagine-se a conduta de descartar ínfima quantidade de substância poluente em rio já poluído), vale dizer, o comportamento do agente terá logicamente menos relevância jurídico-penal – nos âmbitos objetivo e subjetivo – em relação ao resultado.
Da mesma forma, buscar identificar os delitos de acumulação com as hipóteses em que um mesmo ou diversos agentes agindo em unidade de propósitos praticam a repetição de atividades que, individualmente consideradas, não apresentariam ofensividade mostra-se equivocado, pois aqui não se está mais diante de um delito cumulativo, e sim de mera causalidade cumulativa.
Finalmente, não cabe a pretensão de amenizar a discussão, como se a questão pudesse ser referida apenas à aplicação da norma penal. De fato, embora diga respeito diretamente à verificação concreta ou não da ofensividade da conduta do agente, a adoção da cumulatividade na esfera penal acaba por perverter e negar, em última análise, a própria teoria do bem jurídico, abrindo a possibilidade de tipificação de comportamentos de mera violação de dever. Assim, a questão ultrapassa a aplicação da lei penal para atingir a legitimidade da construção típica, a exemplo de diversos delitos existentes na lei penal ambiental brasileira, amplamente questionados justamente por terem sido elaborados sob a perspectiva da acumulação.
De todo modo, a discussão dos delitos de acumulação não se resume ao problema da ofensividade, que muitas vezes pode até chegar a ser constatada. Trata-se de discutir também a culpabilidade em sentido amplo. Nesse sentido, pretende-se introduzir na esfera de imputação uma espécie de concurso objetivo ou involuntário de agentes, já que é da soma objetiva dos seus comportamentos – não raras vezes de forma protraída no tempo – que advém o perigo ou dano ao bem jurídico. Poder-se-ia argumentar que, em relação à conduta por si inofensiva, o agente possui consciência do perigo representado cumulativamente ao bem jurídico, e mesmo assim age. Observa-se, porém, que esse raciocínio acaba levando a uma intolerável presunção de consciência, sendo na prática impossível a comprovação de referido aspecto subjetivo e, antes disso, do próprio perigo decorrente da conduta praticada. E ainda que se comprovasse a consciência do agente nesse caso, não se poderia chegar automaticamente à consideração do elemento volitivo de seu comportamento, sendo inviável concluir pela existência de dolo, ainda que eventual.
Na verdade, o debate acerca dos danos cumulativos é, antes de tudo, uma questão de política criminal. Claro que ao se legitimar os delitos de acumulação, haverá que se flexibilizar institutos e princípios fundamentais em âmbitos específicos de proteção, como, por exemplo, na esfera de bens supraindividuais. O perigo aqui está na setorização e ruptura sistêmica do Direito Penal, pois o que se adota excepcionalmente na esfera supraindividual pode vir a ser aplicado também à sua esfera mais tradicional. Assim, a aplicação do raciocínio de cumulatividade a um pequeno furto realizado em um supermercado (“e se todos fizessem o mesmo?”) levaria ao afastamento do princípio da insignificância e à pretensa da intervenção penal também nesse caso.
O princípio da intervenção mínima do Direito Penal, que postula a legitimidade da intromissão na esfera de liberdade do cidadão somente quando esta for estritamente necessária, não deixa de ser compatível com a concepção dominante do Estado intervencionista, já que a atuação positiva deste para atingir o bem-estar dos cidadãos não obriga a postular como desejável a restrição da liberdade individual além do imprescindível para sua própria proteção. Nesse contexto, soa claro que a intervenção penal voltada à solução dos danos cumulativos resulta equivocada, pois além de não ser este o instrumento legítimo para a proteção direta do futuro, não aumenta a prevenção de determinados comportamentos, permanecendo intocados os conflitos. Nesse caso, a utilização retórica do Direito Penal traduz um mascaramento ideológico, produzindo conse­quências arbitrárias.
Voltando ao raciocínio inicial de Feinberg, que se mostra favorável aos delitos de acumulação sempre que se possa constatar a disposição de uma maioria a realizar tal conduta em razão da baixa capacidade motivadora no âmbito ético-social, conclui-se que a preocupação com os danos cumulativos é justificada, não se devendo esquecer, porém, da esfera administrativa, apta a funcionar muito bem como mecanismo de reforço hábil das expectativas normativas, sem que se faça necessário o recurso ao Direito Penal.

NOTAS

(1) FEINBERG, Joel. The moral limits of the criminal Law. Vol. one. Harm to others. Oxford: Orford University,1984, p.225 e ss.
(2) KUHLEN, Lothar. Umweltstrafrecht. Auf der Suche nach einer neuen Dogmatik. Zeitschrift für die gesamte Strafrechtwissenchaft, 105,1993,p.697 e ss.
(3) HASSEMER, Winfried. El derecho penal en los tiempos de las modernas formas de criminalidad. In: Criminalidad, evolución del derecho penal y crítica al derecho penal en la actualidad). Buenos Aires: Ed. del Puerto, 2009, p. 22.
(4) SGUBBI, Filippo. El delito como riesgo social. Trad. J.E.S. Virgolini. Buenos Aires: Ábaco, 1998,p.67-68.
(5) SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal. Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 1999,p.101.
(6) PAGLIARO, A.; COSTA JÚNIOR, P. J. Dos crimes contra a administração pública. 2ª.ed. São Paulo: RT, p. 20.
(7) SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión ..., cit., p. 104.
(8) KINDHÄUSER, Urs. Elementos fundamentales del derecho penal medioambiental alemán. Revista de Ciencias Penales,V.1,n.2,p.503-504;CARNEVALI RODRÍGUEZ, Raúl. Algunas reflexiones en relación a la protección penal de los bienes jurídicos supraindividuales. Revista Chilena de Derecho,Vol.27,n.01,2000,p.145.
(9) SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión...,cit.,p.112.
(10) DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal. Parte geral. T. I.. São Paulo: RT, 2007, p.141-143.
(11) TIEDMANN, Klaus. Derecho penal y nuevas formas de criminalidad. Trad.M.Vásquez. Lima:Grijley, 2007, p.291.
(12) D’AVILA, Fabio Roberto. O ilícito penal nos crimes ambientais. Algumas reflexões sobre a ofensa a bens jurídicos e os crimes de perigo abstrato no âmbito do direito penal ambiental. RBCCrim, Ano 15, n. 67, p.51-53.
(13) BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo: RT, 2007, p.242-243.
(14) SCHÜNEMANN, Bernd. La relación entre ontologismo y normativismo en la dogmática jurídico-penal. Trad. M. Sacher. In: Modernas tendencias en la ciencia del derecho penal y en la criminología. Madrid: UNED, 2001. p.658.

Ana Elisa Liberatore S. Bechara
Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Boletim IBCCRIM nº 208 - Março / 2010

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