quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Juiz diz que Justiça dos EUA favorece criminosos


Há quem veja a Justiça criminal dos Estados Unidos como um sistema favorável aos réus. Dizem que técnicas jurídicas e acordos generosos com a Promotoria impedem que eles sejam devidamente punidos por seus crimes. Há quem pense o contrário. A alegação é de que o sistema prejudica os réus porque os cidadãos, particularmente os pobres, são vitimados pela má conduta policial, por processos exageradamente zelosos, assistência jurídica inadequada e jurados tendenciosos. "São visões muito simplificadas, mas ambas têm o seu mérito", diz o juiz e professor de Direito de Nova York Daniel Leddy, em um artigo publicado nos sites StatenIslandLive e LegalPlanet.
"Por exemplo, os Estados Unidos é o único país do mundo que emprega a chamada ‘regra excludente’, um princípio pelo qual a maioria das provas obtidas de forma inadequada pela polícia é inadmissível no julgamento", afirma o juiz. Isso aconteceu na semana passada, conta. O Tribunal de Recursos de Nova York suprimiu provas de pornografia infantil, obtidas na residência do réu, porque o mandado de busca continha um erro. O juiz Robert Smith lamentou o erro, mas mandou libertar o réu.
Daniel Leddy também lamenta. Para ele, não faz sentido uma pessoa se beneficiar tão prodigamente por causa de uma má conduta da polícia. Ele admite que é preciso conter a má conduta policial, o que é a atual função da "regra excludente". Mas pensa que essa função deve ser cumprida por meio de outros mecanismos jurídicos. "Ações civis contra a polícia e medidas disciplinares contra os envolvidos deveria ser o suficiente para cumprir essa função", sugere.
Há críticas também ao processo de acordo entre a Promotoria e o réu, com a assistência de seu advogado. Os promotores podem se beneficiar — e realmente o fazem — tanto quanto os réus. Muitos promotores, com casos difíceis, preferem aceitar estrategicamente uma pena menor para o réu, que pode passar menos tempo na prisão ou tempo nenhum, em vez de correr o risco de que ele seja absolvido no julgamento. As regras que favorecem a celeridade dos processos na Justiça, previstas na Constituição, e a agenda lotada dos tribunais também obrigam os promotores a serem mais seletivos sobre casos que realmente devem ser levados ao Tribunal do Júri. Por isso, tentam eliminar a maioria — e conseguem — por meio de acordos.
Há mais críticas. A mais dura é a de que os acordos beneficiam, na verdade, os réus culpados pelos crimes que são acusados. E prejudica os inocentes. Quem não cometeu crime algum não aceita o acordo porque acredita que sua inocência será provada no julgamento. E não concordam com a ideia de receber uma punição menor porque, de qualquer forma, irão para a prisão e terão maus antecedentes criminais, o que tornará difícil conseguir emprego. Mas, quando se saem mal no julgamento, apesar da inocência, a pena mínima é de 20 anos de prisão (a máxima é de prisão perpétua), por não ter aceitado o acordo.
Os juízes também criticam o acordo porque ele transfere para os promotores uma função que pertence a eles ou ao júri: a de sentenciar um réu condenado. Em alguns estados, apenas cerca de 2% dos casos criminais vai a julgamento. O resto é decidido por acordos.
Projeto Inocência
"Quem mantém que a Justiça criminal dos EUA é tendenciosa contra os réus está com a razão", diz o juiz. De acordo com o Projeto Inocência, uma organização sem fins lucrativos que se dedica a tirar inocentes da cadeia, porque foram erroneamente condenados por crimes graves que não cometeram, exames de DNA já estabeleceram a inocência de 301 prisioneiros, 18 dos quais estavam no corredor da morte.

Isso mais recentemente. Levantamentos feitos pela Faculdade de Direito da Universidade de Michigan e pela Faculdade de Direito Northwestern sobre o número de pessoas inocentes, libertadas desde 1989, indicam que o problema é bem maior. Desde então, mais de 1.020 pessoas foram libertadas das prisões, depois de comprovado que eram inocentes e que só foram presas por causa de falhas no processo criminal.
"Como os casos examinados, com maior frequência, são os de crimes graves e condenações de prisão perpétua ou pena de morte, assume-se que milhares de pessoas inocentes estão atrás das grades", diz o juiz.
Os dois fatores mais corriqueiros, dos quais se originam erros judiciais, são confissões falsas e identificações incorretas de pessoas por testemunhas oculares de crimes. O Projeto Inocência relatou que 25% das pessoas libertadas graças a exames de DNA foram condenadas porque fizeram declarações incriminadoras, confissões completas ou acordo com a Promotoria. Técnicas policiais de interrogatório que levam suspeitos à exaustão total, de falsas promessas em troco de uma confissão, cujo texto é alimentado por informações dos próprios policiais, e outras artimanhas são as formas mais frequentes de conseguir a condenação de inocentes.
"É por isso que um suspeito nunca deve abrir a boca em uma delegacia de polícia, antes de ter a assistência de um advogado", diz o juiz.
No Tribunal do Júri, a identificação de supostos criminosos por testemunhas oculares parece ser uma prova definitiva para os jurados. No entanto, 75% das pessoas libertadas pelo Projeto Inocência, graças a exames de DNA, foram condenadas por causa de testemunhas que se equivocaram, de uma forma ou de outra.
Às vezes, a má identificação de suspeitos por testemunhas parece inacreditável, diz o juiz. Ele cita o caso de James O’Donnell, que foi sentenciado à prisão, em maio de 1998, por abuso sexual. A vítima declarou, no julgamento, que não poderia se enganar. Afinal, ela viu o rosto do suspeito a dez centímetros de seu nariz. "Eu teria de ser cega para não ver o rosto do homem que estava tentando me estuprar e me asfixiar com suas mãos", declarou.
O’Donnell passou dois anos na prisão, lidando com todas as dificuldades por que passam os condenados por estupro, antes de sua inocência ter sido comprovada por um exame de DNA e libertado. "O que tornou a condenação tão chocante quanto o falso testemunho da vítima foi o fato de os jurados haverem ignorado provas substanciais da inocência de O’Donnell", diz o juiz. Bastava terem aplicado o princípio da dúvida razoável e ele teria saído do tribunal para casa.
"O princípio mais celebrado do sistema de Justiça criminal dos EUA é o de que é melhor deixar nove criminosos nas ruas do que colocar um inocente na cadeia. Esse é também o princípio mais desrespeitado no país", afirma ele.

João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 4 de dezembro de 2012

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