segunda-feira, 31 de março de 2014

Promotores americanos usam letras de “gangsta rap” como confissão de crimes

Advogados criminalistas nos EUA – além de juízes, juristas e professores universitários – estão se dedicando, por dever profissional, a uma nova pesquisa: o que as letras das músicas do gênero “gangsta rap” realmente expressam e no que se diferem do “hip-hop” ou “rap” e suas versões “hardcore” (uma variação extremista das demais).
Muitos promotores, bem como policiais, não precisam pesquisar nada, porque já chegaram a uma conclusão: as letras do “gangsta rap” expressam a confissão de um crime. Para eles, os criminosos têm essa tendência de contar vantagem sobre os crimes que cometeram, para assumir uma posição privilegiada em gangues.
Essa interpretação dos promotores é largamente contestada por advogados, juristas, professores universitários e diversas organizações. Mas os promotores acreditam que as letras desse tipo de música representam uma ferramenta importante para pegar criminosos que abraçam a violência, sem rodeios, como uma arma de controle. E podem, por isso, ser uma “prova incontestável” de um crime.
“Se você escutar atentamente essas canções, você vai literalmente ouvir membros de gangues confessando crimes que cometeram e, agora, estão divulgando a sua ação na vizinhança”, disse aoNew York Times, o ex-promotor de Los Angeles, Alan Jackson. “O fato de alguém colocar sua confissão em uma música não lhe dá passe livre”.
Para policiais, detetives e promotores, as letras dessas músicas servem, em um julgamento, para estabelecer motivo e intensão, bem como para pintar, para os jurados, um quadro do caráter e do comportamento do músico. Os promotores acreditam que as letras do “gangsta rap”, por si só, constituem uma ameaça de cometer um crime.
No mês passado, dois homens de Pittsburgh, Rashee Beasley e Jamal Knox foram condenados à prisão depois de postar no YouTube um vídeo de “rap”, no qual ameaçavam matar dois policiais que os prenderam por violações ao uso de armas. Apesar de argumentarem, no julgamento, que não tinham qualquer intenção de ferir os policiais – e que a música tinha a proteção constitucional da liberdade de expressão, foram condenados por intimidação, ameaças terroristas e outras acusações.
Em Nova York, detetives monitoram vídeos de “rap” no YouTube para estudar a hierarquia social nas ruas e expressões de ressentimentos, incluindo de uma gangue contra outra, que podem explicar um crime ou a incitação de um crime.
Desde que um agente do FBI recomendou a detetives e promotores que fizessem buscas e apreensões de letras de música desse estilo, esses profissionais abandonaram, em parte, as investigações convencionais. Agora passam muito tempo pesquisando vídeos no YouTube e nas redes sociais, para tentar descobrir culpados de crimes não resolvidos.
Prova contestável
Foi assim que Antwain Steward, um “rapper” que atua com o nome artístico de Twain Gotti, foi preso e condenado em julho do ano passado. Em 2011, um detetive descobriu a canção “Ride Out” que, em sua interpretação, explicava um caso não resolvido de dois assassinatos em 2007.
A polícia não tinha suspeitos, qualquer indicação das armas usadas ou qualquer outra pista que levasse ao assassino ou assassinos de Christopher Horton, 16, e Brian Dean, 20, que seriam membros de uma gangue. E, sobretudo, não havia testemunhas dos assassinatos.
Na letra de seu “gangsta rap”, Steward declara: “Ninguém viu quando eu o apaguei (palavrão). Descreve o que fez e menciona a marca e o tipo de arma. Na verdade, as cápsulas das armas usadas no crime tinham calibres diferentes das mencionadas no “rap”. A música fala sobre um assassinato, não dois. E se refere ao uso de uma faca, arma que não foi usada nos assassinatos.
Depois de estabelecer a conexão entre os crimes e a letra da música, a polícia conseguiu três testemunhas: uma que foi suspeita desses mesmos crimes no passado, mas que, na época, sequer mencionou o nome de Steward para se defender; uma vizinha que, só agora, disse haver visto o “rapper” correndo com uma arma na mão; e um ex-parceiro de estúdio de Steward, que estava enfrentando um processo por um crime não relacionado ao caso e que disse que o “rapper” lhe confessou o crime.
Steward volta aos tribunais em maio. Ele se declara inocente e afirma que a letra de sua música não se refere ao crime. “Nas minhas músicas, eu falo pelas pessoas que vivem nesses lugares terríveis. Não tem nada sobre mim. É sobre o lugar de onde venho”, ele disse aos jornais.
Esse é o ponto do “gangsta rap”, um gênero de música derivada do “hardcore rap”. O gênero surgiu no final da década de 80 nos guetos das grandes cidades americanas e, em seu mundo profano, a verossimilhança com a dura realidade do dia a dia, da violência, das gangues e das drogas é um fator essencial para o sucesso.
A letra do “gangsta rap” tem de expressar a violência que as pessoas gostariam de praticar, mas, por alguma razão, não o fazem. Ou expressar a raiva que elas sentem de tudo o que está a sua volta e como gostariam de reagir às frustrações geradas pelo sistema.
“Se você aspira ser um ‘gangsta rapper’, por definição, suas letras devem ser violentas”, diz o professor de criminologia, lei e sociedade da Universidade da Califórnia Charis Kubrin. Para a professora de Direito da Universidade da Georgia, Andrea Dennis, “os policiais e os promotores ignoram o fato de que os ‘rappers’ não vivem, necessariamente, as diferentes vidas que descrevem em suas letras musicais”.
“O que é mais lamentável é o fato de os policiais e promotores perderem uma quantidade enorme de tempo pesquisando letras e vídeos de ‘rap’ no YouTube e nas redes sociais, em vez trabalhar para produzir provas de formas mais convencionais e convincentes”, afirma o professor da Universidade de Richmond, Erik Nielson. “É uma maneira de introduzir provas pelas portas do fundo”, declara.
Para a American Civil Liberties Union (ACLU), que ajuda na defesa de Steward e de Vonte Skinner, outro “rapper” no mesmo barco, as letras das músicas “gangsta rap” estão tão protegidas pelo direito constitucional da liberdade de expressão, quanto filmes, livros e outras formas de arte.
Decisões recentes da Justiça têm mantido o direito à liberdade de expressão dos produtores de filmes pornográficos, de desenhos animados e videogames violentos, por exemplo. Neste mês, um tribunal decidiu que um enfermeiro pode aconselhar um doente terminal a se matar, porque está protegido pelo direito da liberdade de expressão (só não pode ajudar).
“Se um artista do rap escreve uma letra de música que, ao que parece, abraça o mundo da violência, não há razão para lhe atribuir um motivo ou intenção de cometer atos violentos, pela mesma razão que ninguém vai chamar Dostoyevsky ou Raskolnikov de criminosos pelo que escreveram. Nem vai denunciar Johnny Cash, um dos mais influentes músicos americanos, por declarar na canção “Folson Prison Blues”, que “atirou em um homem em Reno só para ver ele morrer”, escreveram os advogados da ACLU.
O caso de Skinner será julgado por um tribunal superior do estado em breve. Detetives e promotores de Nova Jersey ligaram a letra de um “gangsta rap” de Skinner ao assassinato de dois traficantes. A música anuncia: “vou explodir sua face e deixar seu cérebro espedaçado na rua”. Um problema, para os promotores, é que o “rap” foi escrito três ou quatro anos antes dos crimes.
Mas não é tão fácil assim, livrar o “rapper” da condenação em um tribunal do júri. Nos últimos dois anos, mais de 30 “rappers” já foram processados. Em todos eles, o caso foi construído em torno da letra da música e de outra tática: a apresentação do vídeo aos jurados.
O professor da Universidade de Richmond Erik Nielson diz que o uso de vídeos do YouTube ou mídia social como prova no julgamento é censurável, porque esse é um recurso que pode sujeitar o réu a prejulgamentos, até mais que a letra da música. “Geralmente, os réus vestem terno e gravata para o julgamento, para apresentar uma imagem mais respeitável. Mas, com a apresentação do vídeo, a imagem que prevalece é totalmente desfavorável”, ele afirma.
Os advogados de defesa argumentam que letras de “gangsta rap” e vídeos no YouTube estão sendo usados pela Promotoria de uma forma injusta, porque os jurados – e, em alguns casos, os juízes – vêm o que entendem como glorificação da violência, sem entender que os “rappers” sempre assumem uma personificação fictícia, quase sempre exagerada.
O que é preciso fazer, o que não está acontecendo, é uma conexão direta entre as letras de “gangsta rap” e os crimes. Um levantamento da ACLU em alguns estados revelou que em 14 de 18 casos os juízes permitiram a apresentação de letras e vídeos de “rap” como prova.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 29 de março de 2014

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