segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Causa espanto ainda existir resistência à audiência de custódia


A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil há quase 25 anos, estabelece que toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais — trata-se da chamada audiência de custódia.
O instituto existe para que o juiz analise pessoalmente a legalidade e a necessidade da decretação da prisão preventiva, assim como para a prevenção de maus tratos e tortura durante a abordagem policial. Muito embora o direito de ser levado à presença de um juiz nas primeiras horas do flagrante já fosse norma vigente no país desde que o Brasil subscreveu o pacto, até pouco tempo esta regra não havia sido incorporada à rotina da justiça criminal brasileira. Um preso chegava a levar meses, às vezes até anos, para se encontrar pela primeira vez com o juiz do caso.
Dá para imaginar a quantidade de problemas que ocorrem quando o juiz não vê nas primeiras horas do flagrante o réu que irá julgar.
Para começar, quanto mais tempo o preso demora para se encontrar com o juiz, mais difícil é perceber vestígios de tortura, maus tratos e outros tratamentos desumanos e degradantes eventualmente praticados no momento da prisão. O Brasil, como nos lembram os altos números da letalidade policial divulgados no mês de junho pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (ao menos nove pessoas morrem diariamente por causa de intervenções policiais no país), deixa a desejar no combate à violência policial. O contato do preso com o juiz pode ajudar a prevenir e identificar práticas como estas.
Por outro lado, o monitoramento da implementação das audiências de custódia mostra que, havendo a apresentação pessoal, o juiz tende a apreciar a prisão de maneira mais criteriosa: a comparação de dados atuais produzidos pelo IDDD na cidade de São Paulo no ano de 2015 aos dados de um estudo realizado pelo Instituto Sou da Paz em 2012 aponta para uma redução da taxa de encarceramento. Sabe aquela história de que condenamos aquilo que não conhecemos? Pois é. Na justiça é mais ou menos igual. Quando o juiz conhece pessoalmente o réu, olho no olho, “face to face”, tende a afastar alguns fantasmas que o preconceito costuma criar. Fica, portanto, menos propenso a abusar de medidas coercitivas como a prisão preventiva, que passa a ser aplicada de forma mais cuidadosa. O sistema prisional, hoje abarrotado de presos, passa a ser usado para casos em que a prisão seja realmente imprescindível.
Espanta, por isso, que ainda se resista à implementação do referido instituto. Enquanto presidente do Conselho Nacional de Justiça, o ministro Ricardo Lewandowski trabalhou arduamente para a implementação da audiência de custódia no Brasil, mas o projeto que a insere na lei federal tramita desde 2011 no Congresso Nacional, sem que tenha logrado aprovação.
Ainda hoje, com o projeto apensado ao PL 8.045/2010, que trata do novo Código de Processo Penal, observa-se no Congresso a tentativa de estabelecer audiências de custódia por videoconferência; de alargar o prazo para a sua realização (que se pretende de 24 horas para apresentação do preso a um juiz); e mesmo inviabilizar por completo a inserção do instituto no novo código, sustentando a sua desnecessidade.
Cabe a pergunta: por que o temor em apresentar o preso a um juiz de Direito? O que se passa no momento da prisão que alguns setores da nossa sociedade ainda querem esconder? Se não há o que esconder, como dizem esses que querem inviabilizar a audiência de custódia, então que se apresente a pessoa presa em Juízo em até 24 horas após a prisão em flagrante. Não é possível que, em pleno século 21, alguns ainda queiram esconder aquele que foi preso dos juízes.
Apelamos aos deputados federais para que implementem a Carta Magna e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos sem titubear: toda pessoa presa deve ser apresentada em 24 horas a um juiz para que se decida sobre a legalidade da prisão. É o mínimo que se espera num Estado Democrático de Direito.
 é advogado criminal e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
Revista Consultor Jurídico, 15 de setembro de 2017.

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